2003-05-12 Volta ao mundo

Perversas patentes

Jorge Braga de Macedo

Abril patentes mil – e eventos vários sobre os efeitos do direito de propriedade intelectual (DPI) na promoção da inovação, chave da prosperidade. Saliento uma sessão do Conseil d’ Analyse Économique na presença do ministro das finanças francês, o relatório da Royal Society britânica, que inspirou um editorial do Financial Times, e o 2o Forum Ibero-Americano sobre Inovação, Propriedade Industrial e Intelectual e Desenvolvimento, realizado em Lisboa e encerrado por Agustina Bessa Luís em 30 de Abril. Na véspera tivera lugar em Paris a reunião ministerial da OCDE, na qual Portugal e Japão ajudaram a presidência neozelandesa a preparar a ministerial da Organização Mundial do Comércio em Cancún. Aliás, a julgar pelas exaustivas Actas do 1o Forum Ibero-Americano, até a capa de The Economist sobre DPI no Verão passado poderá vir reproduzida nas Actas do 2o quando se realizar o 3o, desta feita do outro lado do Atlântico.

A ligação do DPI ao comércio mundial coloca a perversidade potencial das patentes no centro do novo paradigma de desenvolvimento, baseado no partenariado entre países ricos e pobres cuja responsabilização mútua assenta em códigos de boa conduta. Vulgarmente chamados "direito macio", esses códigos que a OCDE e outras instituições vêm promovendo nos mais diversos domínios, têm manifestas vantagens sobre a forma mais "dura" dos tratados internacionais por serem, desde logo, mais flexíveis.

à questão de acesso aos mercados, crucial para o sucesso de Cancún, acrescem assim questões de governação das empresas onde a sanção judicial, posto que decisiva para o cidadão, não terá o desejado efeito dissuasor se a regulação esquecer o propósito último de promover a concorrência e melhorar o nível de vida das pessoas mais pobres.

As patentes tornam-se perversas quando protegem interesses instalados, e seus advogados constituídos, contra o resto da sociedade e do mundo. Trata-se de um conluio que usa a defesa da concorrência para atentar contra ela, que invoca o livre-câmbio para o comprometer aos olhos dos países em desenvolvimento. Há registos de patentes que permitem, e até promovem, o abuso da distinção entre investigação e inovação, interagindo perigosamente com falhas de regulação, para não falar da má governação de universidades e de institutos públicos de pesquisa. Essas patentes substituem a "ciência livre" por uma "ciência DPI" litigante e chicaneira que prejudica o bem comum em vez de o promover. O prejuizo é tanto maior quanto menos desenvolvida economia, porque aí tende a ser também pior a governação e portanto a capacidade para tirar partido da globalização.

Pela sua novidade, as tecnologias informática e biológica exigem uma centralização regulamentar e judicial muito para além do nacional, do europeu, e até do da área da OCDE. O que torna o âmbito ibero-americano particularmente interessante, sobretudo se conseguir afectar objectivos e instrumentos do Secretariado da Cimeira Ibero-Americana, sediado em Madrid. Em Lisboa, recorde-se, há a CPLP.

Entretanto, uma abordagem económica demonstra o "desequilíbrio patente" (título do editorial do FT já citado) no que toca à regulação da inovação no mundo. Está comprovada empiricamente a teoria do crescimento endógeno das nações, segunda a qual o seu produto por habitante é proporcional à inovação. Se uma economia embebida em inovação cresce sem limite, há que saber como embeber! Tanto mais que o conhecimento promove o bem comum global mas os países onde mais se inova são os países mais desenvolvidos. Os efeitos positivos do crescimento endógeno nos países subdesenvolvidos ficam coarctados, ameaçando tornar a inovação inimiga do mesmo desenvolvimento que deveria sustentar.

Apontam-se quatro condições para o processo resultar, sendo certo que é a sua ponderação concreta que determina se o DPI contribui positivamente ou não para a prosperidade das pessoas. Como o DPI relevante não é só nacional no nosso mundo globalizado, multiplicam-se os critérios e resultados da ponderação das quatro condições.

A primeira condição para embeber a economia em inovação é haver concorrência na própria inovação. A segunda condição refere-se à concorrência no mercado dos produtos, a qual obriga as empresas a inovar para se manterem competitivas. A terceira condição de sucesso é a difusão do conhecimento acumulado por inovações anteriores.

Só a quarta condição justifica que se estabeleça um direito de propriedade sobre a referida inovação porque é uma condição sobre a protecção contra a concorrência nos mercados de um produto desenvolvido graças a determinada inovação.

Vê-se pela quarta condição que os efeitos do direito de propriedade conferido podem ser contrários às três primeiras: basta o DPI ser demasiado estreito ou demasiado extenso. No fundo, o monopólio de uso que o DPI confere ao inventor refere-se a um bem público que é o conhecimento não a uma coisa privada. Há que incentivar a sua produção em benefício da inovação futura.

Se a regulação do monopólio respeitar as quatro condições, conseguirá sustentar a inovação. Como equilibrar então os objectivos contraditórios de criar um ambiente propício à inovação e de difundir a inovação uma vez realizada? Esse equilibrio costumava basear-se na distinção entre investigação fundamental (bem público) e investigação aplicada, sendo apenas esta última protegida por patentes. Acontece que a distinção é cada vez mais arbitrária, o que pode travar a difusão dos conhecimentos fundamentais a montante das patentes. O crescimento muito rápido do número de patentes põe problemas de gestão e de controlo, nomeadamente para as novas tecnologias mencionadas acima.

Não sei se os três eventos de Abril levarão a uma ultrapassagem rápida dos efeitos perversos das patentes ou se a maior consciência que revelam é apenas um pico sazonal. Até porque em vez do nosso provérbio "Abril águas mil", os franceses têm outro, com implicações de futuro: En Avril ne te découvre pas d’ un fil, mais en Mai fais ce qui te plaît. Oxalá a regulação evolua para que os inventores possam fazer o que querem – inventar – em qualquer parte do mundo, não só neste mês como todo o ano e, – Agustina oblige – não só em inglês!