Estrelas e Quinas

6/11/95

PARLAMENTOS E COMISSÃO

A Europa como "império civil" de nações-Estado soberanas interessa aos portugueses e aos cidadãos dos outros países lusófonos. O procedimento regra é a parceria, a soberania nacional situa-se na excepção.

Jorge Braga de Macedo

COINCIDIU no tempo com a tomada de posse do governo da nova maioria e com o respectivo conselho de ministros dominical. Teve lugar na sede do Senado francês, o bonito palácio do Luxemburgo. Atraíu empresários, parlamentares e académicos de toda a Europa, com uma discreta presença americana e japonesa. Foi a reunião europeia da Comissão Trilateral, dedicada à revisão do Tratado da União Europeia na Conferencia Inter-Governamental de 1996. Como é costume trilateral, houve sessões dedicadas ao país anfitrião. Talvez surpreenda, mas estas não foram franco-francesas. Pelo contrário, os temas todos de Paris coincidem com temas nossos. Com estrelas e quinas, por um lado. Com parlamentos e comissão, por outro.

Com estrelas e quinas porque os seis oradores franceses reflectiram bem o estado do seu país na Europa. De manhã, ouvimos o ministro das finanças, o líder parlamentar socialista (e ex-primeiro ministro) e o chefe do patronato, respectivamente, afirmar o consenso nacional quanto à política económica, levantar dúvidas quanto ao mesmo e criticar suavemente os políticos por não se entenderem quanto à política económica. À tarde foi a vez dos professores. Um deles, sociólogo de profissão, parecia estar a citar as teses do passado congresso "Portugal: que futuro?" tal o catastrofismo que via nos franceses. Mas foi mais longe: explicou-o: à medida que a França tem sucesso no mercado internacional, julga perder identidade cultural. Razão do paradoxo, as saudades de ser potência mundial. O fim da excepção, da originalidade, francesas.

Julguei-me por instantes transportado ao palácio de Belém, donde durante quatro anos, brotaram tantas saudades de ser Abril em Portugal. E, no do Luxemburgo, tentei explicar o mal francês recorrendo à minha experiência vivida de uma doença portuguesa, a falta de cidadania fiscal. As despesas públicas, precisei, são mais de metade do produto interno bruto e o contribuinte - classe desprezada - não tem garantias contra os impostos escondidos. O sociólogo também achou a falta de cidadania fiscal endémica na pátria da Revolução, mas considerou que era pequenino estar a trazer os impostos para um debate tão elevado sobre mercado e cultura. Estive para lhe citar a nossa sabedoria popular: "pague e não bufe" mas a tradução não era óbvia e calei-me, certo de que pequenino em matéria de impostos é o que se quer ser.

Parlamentos e comissão também é tema nosso, e, como a cidadania fiscal, não tem eco na opinião publicada. Na Trilateral, fora introduzido no jantar inaugural pela alocução do Sr. Séguin sobre a CIG 96, a aliança franco-alemã e o papel dos parlamentos nacionais. Falaram dois membros do chamado "grupo de reflexão" sobre a CIG 96, um pela comissão europeia, o outro pelo governo alemão. E lembrei-me das teses do parlamento português, que repetira em Coimbra poucas semanas antes, por ocasião da apresentação pública do volume II da série Acompanhamento parlamentar da revisão do Tratado da União Europeia na Conferencia Inter-Governamental de 1996.

Nesse volume compara-se o papel do parlamento europeu ao da comissão na parceria europeia introduzida pela lei nº 20/94, aprovada por unanimidade no parlamento. A parceria tem vertentes nacional e comunitária. Parlamentos e comissão quer pois dizer parlamentos nacionais e comissão europeia, mas também parlamentos nacionais e parlamento europeu, governos nacionais e comissão europeia. É a matriz da qual nasceu a ideia portuguesa da Europa, expressa no volume com que encerrei as actividades da comissão parlamentar dos assuntos europeus durante a VI Legislatura. E como as coincidências de tempo e espaço estão no centro deste escrito, é de notar que, nascido e criado em Lisboa, eleito deputado pelo Porto, acabei o mandato em Coimbra, no centro do país.

A numerosa assistência universitária também ouviu de todos os oradores das 4 sessões de trabalho que os parlamentos nacionais devem estar envolvidos na parceria europeia. Sem esquecer que os princípios consensuais acolhidos na resolução nº 21/95 se construíram a partir de divergências, por vezes aparatosas, em plenário. Como estas divergências iludiram jornalistas com menos traquejo parlamentar, perdeu-se na opinião pública o reforço da posição negocial do governo que se ganhou no Diário da República de 8 de Abril passado. Ficou aí fechado - até hoje - o contributo português para a Europa dos parlamentos e daí para uma Europa mais próxima dos cidadãos.

Contributo assente nos valores da proximidade, da legitimidade e da imputabilidade, que são tão portugueses quanto europeus (sendo conhecidos na gíria pelas iniciais em inglês P, L, A). Prova afinal que centro e periferia são, em Portugal como na Europa, conceitos inúteis e até perversos para "situar a soberania". E por isso concluí o comentário ao relatório do parlamento europeu sobre a CIG, apresentado pelo seu autor, o trabalhista escossês David Martin, apelando a que os juristas ali presentes se voltassem a interessar pela ordem jurídica da monarquia danubiana e do império austro-húngaro, tal como foi analisada pela escola de Viena nos anos 1920 e poderia sê-lo na escola de Coimbra nos anos 1990. A Europa como "império civil" de nações-Estado soberanas interessa aos portugueses e aos cidadãos dos outros países lusófonos. O procedimento regra é a parceria, a soberania nacional situa-se na excepção.

Se assim não for, a Conferencia Inter-Governamental poderá enveredar pelo reforço da inter-governamentalidade, que favorece, por via de regra, alianças entre Estados grandes sobre amplas coligações que incluam Estados médios como o nosso. Daí ignoradas resoluções parlamentares portuguesas ( a nº 21 e mais 4) de estabelecer uma parceria governo-parlamento através da comissão de assuntos europeus e entre parlamentos, através da conferencia semestral destas comissões. Daí os contactos que a comissão parlamentar de assuntos europeus portuguesa manteve com os serviços da comissão europeia - e que constam do volume apresentado na alma mater juris coimbrã.

Se calhar, e como quem não quer a coisa, os parlamentos nacionais e a comissão europeia vão ser os grandes perdedores da CIG 96. É bom sinal que o comissário responsável se desloque a Madrid dentro de dias para a 13ª dessas conferências, XIII COSAC na gíria parlamentar. Mau seria que a obsessão dialogante de Marcelino Oreja o impedisse de defender a importância da comissão europeia na negociação permanente a que os estados da união se entregam. Nos assuntos europeus, como em todos os outros, o diálogo pode ser uma ilusão. A parceria não.