DEPOIMENTO DO PROF. DOUTOR JORGE BRAGA DE MACEDO
À COMISSÃO EVENTUAL DE INQUÉRITO PARLAMENTAR PARA A APRECIAÇÃO DO PROCESSO PRIVATIZAÇÃO DO BANCO TOTTA & AÇORES
1 DE SETEMBRO DE 1994
Para começar gostaria de agradecer à Comissão de Inquérito a honra que me faz chamando-me a depôr. O facto de ter sido convocado para aqui estar hoje supera a meu ver quaisquer requisitos formais que eventualmente se apliquem a Deputados no exercício das suas funções, como é o meu caso.
O Estado desempenha, relativamente ao Banco Totta & Açores, S.A. dois papéis: por um lado, é o seu accionista, por outro, é o regulador do mercado de capitais e do sistema financeiro. Estes papéis do Estado têm sofrido uma mudança substancial nos últimos anos e, designadamente durante esta legislatura.
O Programa de Governo aprovado nesta Assembleia, refere no seu Capítulo II, Secção 4, as Políticas Financeiras e Estruturais. São elas: 1) a política monetária e cambial; 2) as privatizações e função accionista do Estado; 3) o mercado de capitais; 4) o sistema financeiro e 5) a projecção externa.
Em Novembro de 1991, o programa de convergência Q2 realçava a importância destas políticas financeiras e estruturais para a queda das taxas de juro. O Programa Revisto, apresentado dois anos depois, faz um balanço provisório destas políticas nos seguintes termos: " A liberalização do sector financeiro tem sido ampla, tendo o quadro institucional evoluído significativamente com as restauração da convertibilidade, a proibição do financiamento monetário e a nova lei bancária. Em paralelo, foram adoptados novos dispositivos no reforço da supervisão prudencial. A extensão das privatizações coloca Portugal no topo dos países industrializados que promoveram privatizações no passado recente".
Conseguiu-se assim acelerar o processo de privatizações por forma a reestruturar e internacionalizar a economia nacional, retirando o Estado do mercado de capitais. Com esse propósito, planeou-se em meados de 1992 que a República regressasse aos mercados externos quer como emitente obrigacionista, quer como accionista vendedor. Com a liberalização e internacionalização do sistema financeiro, conseguir-se-ia que as empresas portuguesas tivessem acesso a investimentos em condições económicas e financeiras tão vantajosas quanto as suas congéneres europeias.
O BTA perfilou-se desde logo, como um bom exemplo de colocação internacional de acções.
A globalização dos mercados exige, porém, um reforço da regulação por forma a defender a trasnsparência e a justiça locais.
Por isso, a função accionista e a função reguladora do Estado estão intimamente relacionadas, ainda que correspondam a duas vertentes distintas, que ganham em ser tratadas sequencialmente.
Começo pela função accionista do Estado, na medida em que a 1ª fase da privatização do BTA já tinha ocorrido através dos Decretos-Leis nº 352/88, de 1 de Outubro, e nº 170-B/90, de 26 de Maio. Restava apenas ao Estado completar a operação, através eventualmente de uma colocação de acções no exterior que pudesse contribuir para a imagem de solidez, modernidade e internacionalização que o Programa de Governo pretendia dar ao sistema financeiro português.
Este aspecto internacional era tanto mais natural no caso do BTA quanto é certo que a 1ª fase da privatização já tinha atraído accionistas estratégicos estrangeiros, nomeadamente o Banesto.
Os interesses que ao Estado, enquanto accionista do BTA, competia prosseguir eram:
a) assegurar a estabilidade accionista e bom relacionamento institucional entre os vários parceiros estratégicos;
b) contribuir para a internacionalização do sistema financeiro;
c) defender os interesses patrimoniais do Estado.
Foi nesse espírito que o processo foi, e continua a ser, executado pela Secretaria do Estado das Finanças e acompanhado pela Comissão de Acompanhamento das Reprivatizações.
Assim, o Decreto-Lei nº 266/93, de 31 de Julho elevou para 25% ( e para 40% e 45% nas fases posteriores de reprivatização) a percentagem máxima do capital do BTA que pode ser detida por entidades estrangeiras.
A minha intervenção na vertente da função accionista do Estado limitou-se a reuniões com os principais accionistas privados, nomeadamente o Senhor Mário Conde e Dr. José Roquette.
A 1ª reunião com os accionistas teve lugar durante um almoço de trabalho no Ministério das Finanças realizada a 22 de Abril de 1992. A ela assistiram, além dos accionistas já referidos, o Senhor Juan Belloso e Dr. Alípio Dias, bem como os Secretários de Estado das Finanças, Dr. Elias da Costa e do Tesouro, Dr. José Braz. Ficou claro, nessa reunião, o interesse estratégico do Banesto no BTA, o respeito pela identidade portuguesa do BTA e a vantagem em coordenar a estratégia de internacionalização, nomeadamente extra-europeia dos dois Bancos. Também ficou claro que a função accionista se não podia separar da supervisão bancária, embora esta estivesse desgovernamentalizada como adiante explicarei com maior detalhe. Nessa reunião tive oportunidade de insistir sobre a necessidade de transparência a que a globalização dos mercados obriga e que a lei portuguesa consagra.
Em 29 de Janeiro e 4 de Março de 1993, concedi audiências respectivamente ao Senhor Mário Conde e ao Dr. José Roquette, os quais me reafirmaram os príncipios acima enunciados. Não me impressionou a existência de acordos entre accionistas em execução da visão estratégica comum na medida em que esses acordos tinham como condição suspensiva da sua eficácia, o não serem contrários aos diplomas de privatização, conforme fui informado pelo Dr. José Roquette.
Em 9 de Maio de 1993, em audiência concedida ao Dr. José Roquette, a estratégia de internacionalização conjunta, BTA/Banesto, foi de novo abordada destacando-se o interesse em reforçar a componente norte-americana.
Foi nessa sequência, que teve lugar, a 17 do mesmo mês, uma reunião entre os dois accionistas, Mário Conde e José Roquette, e um representante da J.P. Morgan, o Senhor Robert Mendoza, reunião à qual assitiu o Director-Geral do Tesouro, Dr. Manuel Pinho. A principal preocupação dos accionistas privados prendia-se com o próximo aumento de capital do Banesto, que implicava a venda de acções em Nova York e que exigia uma identificação precisa da estrutura accionista do Grupo Banesto. Os accionistas presentes queriam assegurar-se que a caracterização dessa estrutura accionista não era vista com desagrado pelo Governo Português. Do meu lado, esclareci a intenção do Governo em também colocar acções do BTA no mercado nova-iorquino, reforçando assim a necessidade de transparência de toda a situação. Durante a conversa tornou-se claro que os accionistas estrangeiros tinham uma influência na gestão do BTA muito superior à participação social que afirmavam deter. Perante este paradoxo reafirmei três príncipios a que deveria obedecer qualquer solução futura:
a) serem os acordos entre o Banesto e o BTA conformes com os diplomas de reprivatização do BTA;
b) maximizar a receita da privatização;
c) proteger os interesses dos accionistas do BTA, em especial dos pequenos accionistas, bem como dos pequenos depositantes.
Concluí que a solução, que devia ser totalmente transparente, incluía vertentes jurídica, política e técnica e aguardei que me fizessem chegar antes da Assembleia Geral do Banesto um texto que satisfizesse esses requisitos.
Em reunião que tive com o Dr. José Roquette em 22 de Maio de 1993, fui informado que não tinha sido possível obter um acordo nas bases em que eu o exigira.
Uma vez que a projectada colocação das acções do BTA em Nova York teria que obedecer aos mesmos requisitos de transparência que o aumento de capital do Banesto, constitui um grupo de trabalho que incluía o Secretário de Estado das Finanças, o Engº Cruz Filipe, técnico do Ministério das Finanças e o Dr. Manuel Pinho, com vista a preparar a referida colocação de acções na Bolsa de Nova York em Setembro de 1993, simultaneamente com a 1ª emissão global em US Dollars da República Portuguesa.
Também convoquei o Presidente da CMVM, Dr. Costa Lima, a quem solicitei me mantivesse informado das averiguações sobre as participações do BTA.
Foi por isso que no dia 22 de Junho de 1993 reafirmei no Programa do Canal 1 da RTP, "De Caras", onde também participaram alguns Deputados aqui presentes, os 3 príncipios da reunião de 17 de Maio.
Durante o Seminário do Banesto em Estepona, Espanha, em 3 e 4 de Julho, o Senhor Mário Conde terá afirmado a jornalistas portugueses controlar cerca de 50% do capital do BTA, afirmações às quais a Comunicação Social deu largo eco.
A audiência que o Senhor Mário Conde solicitou ao Primeiro-Ministro em fins de Junho, e à qual fui convidado a assistir, foi por aquele accionista lamentado o teor das notícias ainda vindas a lume na Imprensa sobre o controle ilegal que o Banesto exercia sobre o BTA e reafirmado a sua intenção de respeitar totalmente a lei portuguesa e de tudo fazer para retirar o BTA da imprensa.
No dia 6 de Julho, concedi nova audiência ao Dr. José Roquette, que me afirmou não ir o seu Grupo participar no aumento de capital do Banesto, o que implicava a prazo desinteressar-se dum projecto empresarial que ele considerava ter sido irremediavelmente distorcido pelos accionistas espanhóis e também pela Administração do BTA. Mais acrescentou que me diria quando iria concretizar essa intenção de afastamento, o que veio a acontecer no dia 11 de Novembro de 1993 em reunião a que também assistiu o Secretário de Estado das Finanças, Dr. Elias da Costa.
Nesse mesmo dia perguntei ao Governador do Banco de Portugal, Prof. Miguel Beleza, como é que estavam a decorrer as investigações, ao que me respondeu que estavam a decorrer normalmente.
As numerosas reuniões que tive com o Governador do Banco de Portugal em Setembro, Outubro e Novembro relacionaram-se com o Orçamento, o Programa de Convergência Revisto e a Caixa Económica Açoreana, não me tendo ele nunca suscitado quaisquer dúvidas ou preocupações sobre o caso BTA/Banesto.
Com o Presidente da Comissão Executiva do BTA, Dr. Alípio Dias, apenas reuni uma vez sobre este assunto. Foi no dia 1 de Setembro de 1993 e teve como objectivo ser-me relatado a visão que ele tinha sobre as implicações políticas das investigações na altura em curso.
Enquanto Ministro das Finanças, é evidente que não me cabia, nem poderia caber o acompanhamento concreto de instituições de crédito, nem, por maioria de razão o casuísmo da respectiva actividade. Tal acompanhamento faz parte da função tradicionalmente apelidada de fiscalização bancária e que na actual Lei Orgânica do Banco de Portugal aprovada pelo Decreto-Lei 337/90, de 30 de Outubro é referida como supervisão.
Ao Ministro das Finanças compete, isso sim, a supervisão da supervisão, ou seja, verificar se a supervisão do sistema bancário se processa de acordo com os superiores interesses da política económica e social do Governo e tomar as medidas necessárias caso tal não se verifique. Isto obviamente para além das medidas que se tornem necessárias em casos extremos que ponham em grave perigo a economia nacional, situação que não está em causa .
Como é sabido, é discutível qual a estrutura que deve revestir a supervisão do sistema bancário. Para uns a supervisão deve caber a um Departamento da Administração Pública. Para outros, ao Banco Central. Outros ainda, defendem um sistema misto. As respostas não são assim uniformes, variando consoante os locais e os tempos.
Em Portugal, a fiscalização das instituições de crédito competia tradicionalmente a um departamento da Administração Pública, que era a Inspecção Geral de Crédito e Seguros. É o que decorre dos artigos 13º e 15º do Decreto-Lei nº 41.403, de 27 de Novembro de 1957, e dos artigos 13º e 16º do Decreto-Lei nº 42.641, de 12 de Novembro de 1959.
Determinavam os mencionados diplomas ser da competência do Ministro das Finanças a superintendência, coordenação e fiscalização da actividade das instituições de crédito, excepto na parte em que essa competência fosse por lei cometida a outra entidade, acrescentando que a fiscalização dos bancos comerciais e outras instituições bancárias e parabancárias seria exercida através da Inspecção-Geral de Crédito e Seguros.
A Inspecção Geral de Crédito e Seguros foi extinta pelo Decreto-Lei nº 301/75, de 20 de Junho, na sequência da nacionalização do Banco de Portugal levada a efeito pelo Decreto-Lei nº 45.274 de 13 de Setembro de 1974 e a nacionalização do sector bancário português, levada a efeito pelo Decreto-Lei nº 132-A/75, de 13 de Março.
O Decreto-Lei nº 301/75 transferiu para a competência do Banco de Portugal as atribuições que por Lei cabiam à Inspecção de Crédito da referida Inspecção Geral de Créditos e Seguros, excluindo apenas dessa transferência a instrução dos pedidos de autorização, bem como a fiscalização dos mediadores de compra e venda de bens imobiliários e as atribuições que em matéria tributária ou de carácter fiscal, eram cometidas à Inspecção pela legislação respectiva (artigos 1º e 2º).
Passou igualmente para o Banco de Portugal a competência quanto à instauração de processos de transgressões, continuando a aplicação das sanções a ser da competência do Ministro das Finanças (artigo 4º).
Como no próprio relatório do diploma se diz, as razões de ser da mudança radicaram-se essencialmente na necessidade de um maior controlo do sistema bancário pelo Banco de Portugal e na inconveniência de prolongar a existência de duas estruturas paralelas e a vantagem de conseguir o melhor aproveitamento dos bens disponíveis, em ordem a atingir uma maior eficácia na acção coordenadora e dinamizadora do Banco Central.
É neste enquadramento que surge a primeira Lei Orgânica do Banco de Portugal aprovada pelo Decreto-Lei nº 644/75, de 15 de Novembro, cujo artigo 21º dizia: "As funções do Banco no domínio da fiscalização das actividades das instituições de crédito, auxiliares de crédito e para-bancárias serão definidas através de adequada articulação com o Ministério das Finanças".
A situação não teve alterações significativas até ao Decreto-lei nº 51/84, de 11 de Fevereiro, o qual reabre a actividade bancária à iniciativa privada, na sequência da alteração à Lei nº 46/77 (Lei de Delimitação dos Sectores), de 8 de Julho levada a efeito pelo Decreto-Lei nº 406, de 19 de Novembro.
Dada a adesão de Portugal à Comunidade Europeia e a necessidade de adaptar o regime legal português ao Direito Comunitário, o Decreto-Lei nº 51/84 foi muito rapidamente substituído pelo Decreto-Lei nº 23/86, de 18 de Fevereiro. Neste diploma, embora o licenciamento de instituições de crédito pertencesse ao Governo, sob a forma de Portaria conjunta do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças, devia sempre ser precedida de parecer do Banco de Portugal, entidade à qual cabia a instrução dos respectivos processos.
Os poderes de intervenção do Banco de Portugal no âmbito das garantias de liquidez e solvabilidade das instituições de crédito, a chamada supervisão prudencial, ficaram então claramente definidas no artigo 11º do Decreto-Lei nº 24/86, do mesmo dia 18 de Fevereiro. Segundo esse mesmo Decreto-Lei a intervenção do Ministro das Finanças resumia-se às chamadas providências extraordinárias, isto é, as destinadas a fazer face a situações de desiquilíbrio que, pela sua extensão ou continuidade, pudessem afectar o regular funcionamento de uma instituição de crédito ou perturbar as condições normais do mercado monetário, financeiro ou cambial, mas, mesmo nesse caso, mediante parecer do Banco de Portugal, situação que perdeu relevância prática em face da alteração à Lei Orgânica do Banco de Portugal levada a efeito pelo Decreto-Lei nº 132/90, de 20 de Abril. De facto, acrescentou este diploma ao artigo 27º da Lei Orgânica um novo número, o 3º, que permitia ao Banco de Portugal adoptar as medidas que se mostrassem necessárias à prevenção ou cessação de actuações contrárias ao que fosse determinado para efeitos de garantir a liquidez e solvabilidade das instituições de crédito e bem assim à correcção de efeitos produzidos por tais actuações.
A subsequente Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pelo Decreto-Lei nº 337/90, de 30 de Outubro, reforçou e alargou este regime. Nela, e como decorre dos respectivos artigos 21º e 22º, nº 1, alínea b), a supervisão surge no âmbito da orientação e fiscalização dos mercados monetário, financeiro e cambial.
A competência do Banco para adoptar as medidas que se tornassem necessárias à prevenção ou cessação de actuações contrárias às garantias da liquidez e solvabilidade, e bem assim à correcção dos efeitos produzidos por tais actuações, foi ampliada a quaisquer medidas determinadas nos termos do artigo 22º, nº 1, isto é, quaisquer medidas tomadas no âmbito da competência do Banco para orientar e fiscalizar os mercados monetário, financeiro e cambial, nos termos do nº 2 do mesmo artigo 22º.
A fiscalização das instituições de crédito, agora denominada de supervisão, encontra além disso sede específica no artigo 23º da Lei Orgânica, no qual se reforça também a competência do Banco de Portugal, ao fazê-la abranger a apreciação dos pedidos de constituição de instituições de crédito, bem como da sua fusão, cisão ou modificação do objecto, fórmula abrangente que parece ter em vista mais do que a intervenção opinativa que a lei ao tempo vigente lhe dava, o próprio licenciamento que a lei futura lhe veio atribuir.
Neste contexto, a supressão na Lei Orgânica de 1990, da referência à articulação com o Ministério das Finanças sobre a fiscalização bancária constante da Lei Orgânica de 1975, revela o claro objectivo do legislador de cometer ao Banco Central, em exclusivo, essa mesma função agora chamada de supervisão.
Trata-se, aliás, da mesma perspectiva de desgovernamentalização que enforma outros diplomas da época, como é o caso do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de Abril.
É neste quadro legislativo que iniciei o meu mandato de Ministro das Finanças em 31 de Outubro de 1991.
Foi-me então presente um projecto de Lei Bancária elaborado pelo Banco de Portugal e já objecto de primeiras discussões no seio do Governo anterior.
Esse projecto reforçava e alargava substancialmente os poderes de supervisão do Banco de Portugal, eliminando até qualquer possibilidade de intervenção do Governo e do Ministro das Finanças, quer quanto à superintendência dos mercados, quer até quanto à necessidade de fazer face a perturbações que pusessem em grave perigo a economia nacional.
O projecto consubstanciava ainda aspectos, a meu ver, fundamentais, e que aliás representavam obrigação jurídica da República Portuguesa, inerentes à transposição das Directivas Comunitárias necessárias para a supressão das restrições à liberdade de estabelecimento e à liberdade de prestação de serviços das instituições financeiras. Refiro-me em especial às Directivas de Coordenação Bancária, quer a Primeira de 12 de Dezembro de 1977 (Directiva nº 77/780/CEE do Conselho) na parte que ainda não havia sido acolhida na legislação nacional a coberto de derrogação acordada, quer a Segunda de 15 de Dezembro de 1989 (Directiva nº 89/646/CEE do Conselho), e à Directiva nº 92/30/CEE do Conselho de 6 de Abril de 1992 sobre supervisão de instituições de crédito em base consolidada.
Daquelas Directivas tem especial interesse o aspecto do controlo dos accionistas detentores de participações qualificadas. É pacífico que a Banca é uma profissão que tem que ser reservada a pessoas escrupulosas. Não basta, por isso, a intervenção tradicional da entidade supervisora a nível das relações prudenciais. Também não basta a intervenção, também hoje tradicional, do controlo da idoneidade e competência dos administradores e directores das instituições de crédito. É indispensável que os accionistas não possam pôr em causa a gestão sã e prudente da gestão de crédito em que participam.
Esta perspectiva consubstanciada na 2ª Directiva de Coordenação Bancária, já então não era nova. Com efeito, já o Decreto-Lei nº 23/86 impunha uma apreciação da idoneidade dos accionistas fundadores de uma instituição de crédito ao exigir, no artigo 5º, nº 1, que o pedido de autorização fosse acompanhado, entre outros elementos, da identificação pessoal e profissional dos accionistas fundadores, com especificação do número de acções por cada um subscritas e do certificado de registo criminal dos accionistas fundadores, quando pessoas singulares, e dos seus administradores, directores ou gerentes quando pessoas colectivas, bem como declaração de que nem os accionistas fundadores nem sociedades ou empresas, cujo controle tenham assegurado ou de que tenham sido Administradores ou Gerentes forem declarados em estado de insolvência ou falência (artigo 5º, nº 1, alíneas f), g) e h)).
Relativamente a accionistas fundadores que fossem instituições de crédito ou outras pessoas colectivas, o pedido de autorização devia ainda ser instruído com os elementos tendentes a demonstrar o efectivo substracto social dessas pessoas colectivas, como é o caso da relação, acompanhada de notas biográficas das pessoas que constituem a administração, direcção da requerente e distribuição do capital social desta e da relação dos accionistas titulares de mais de 5% do mesmo capital e ainda da relação das instituições de crédito e outras empresas em cujo capital a requerente participem. (artigo 5º, nº 2, alíneas c),d) e e)).
Os elementos tendentes a demonstrar a idoneidade dos accionistas fundadores podiam ser dispensados quando o Banco de Portugal deles já tivesse conhecimento ( artigo 5, nº 3).
O regime não era então satisfatório, na medida em que, se permitia o controlo da idoneidade dos accionistas fundadores, não permitia o controlo da idoneidade daqueles que subsequentemente adquirissem aquela qualidade, situação à qual os trabalhos preparatórios da 2ª Directiva de Coordenação Bancária pretendia, e bem, dar resposta. No sistema interno português, a resposta é dada pelo Decreto-Lei nº 228/87, de 11 de Junho.
Nos termos do artigo 1º deste diploma, qualquer pessoa, singular ou colectiva, que, directamente ou por interposta pessoa adquira 15% ou mais do capital social de uma instituição de crédito (bem como duma Companhia de Seguros, o que para o caso não é relevante) deve comunicar ao Banco de Portugal o montante da respectiva participação, recaindo idêntica obrigação sobre as sociedades participadas.
A sanção de violação da obrigação de comunicar é, o limite de direito de do prevaricador ao máximo de 15%, sanção inspirada dos trabalhos preparatórios da 2ª Directiva de Coordenação Bancária aos quais o relatório do diploma português expressamente se refere.
A fiscalização do disposto no diploma compete, como é evidente, ao Banco de Portugal.
A Directiva Comunitária veio a consagrar ainda outras limitações, ao exigir declaração de não objecção por parte da autoridade competente para a aquisição de participações qualificadas, sendo esse o regime que veio a ser acolhido na nova Lei Bancária em vigor desde 1 de Janeiro de 1993.
A minha intervenção, enquanto supervisor da supervisão, consistiu essencialmente em ponderar as soluções que o projecto elaborado consubstanciava. Manteve-se o sistema vigente desde 1975, e sobretudo desde a Lei Orgânica de 1990, de a supervisão caber exclusivamente ao Banco Central. Entendi no entanto ser indispensável definir na lei o conceito de supervisão, com vista a determinar os respectivos parâmetros éticos em confronto com os direitos dos cidadãos, bem como introduzir referências à superintendência dos mercados, da competência do Ministro das Finanças, e às medidas apropriadas para fazer face a eventuais perturbações que ponham em grave perigo a economia nacional, da competência do Governo. É o que rezam os artigos 116º, 73º a 77º e 91º da Lei Bancária.
As razões que levaram a manter a solução anterior prendem-se com a necessidade de reforçar a supervisão, dada a liberalização que a nova Lei Bancária instituía, com o regime de supervisão pelo País de origem consagrado na 2ª Directiva de Coordenação Bancária e também acolhido na nova Lei Bancária, e com a necessidade de preservar e reforçar a imagem do Banco Central. Além disso, afirmações dos principais responsáveis daquele Banco sobre as vantagens em que os respectivos poderes fossem reforçados levavam a crer que a instituição teria capacidade para dar resposta nacional aos desafios da globalidade.
Ora, o quadro do Tratado da União Europeia, e do reforço que consagra dos poderes do Banco Central em matéria de política monetária e cambial, não podia deixar o Ministro das Finanças português indiferente à imagem e capacidade desse Banco Central numa vertente de actuação que, embora diversa, é afim. Por isso, o Programa do Governo as junta, e bem, na Secção "Políticas Financeiras e Estruturais" .
Qualquer intervenção minha em campo que não era da minha competência institucional, seria naturalmente abusiva, prejudicando a política monetária e cambial e a tranquilidade dos mercados.
Enquanto supervisor da supervisão, cabia-me apenas fazer publicamente a pedagogia da modernização institucional das entidades supervisoras que o sistema financeiro exigia.
Em termos concretos, no quadro da preparação da Cimeira luso-espanhola de Trujillo que teve lugar em 14 de Dezembro de 1991, o Ministério das Finanças, através do Secretário de Estado do Tesouro, Dr. José Braz, solicitou à entidade de supervisão considerada competente, - o Banco de Portugal, - um relatório sobre a estrutura accionista do BTA, o qual foi entregue acompanhado por um cartão do Governador, Dr. Tavares Moreira, onde se refere que os dados "de que o Banco de Portugal tem conhecimento oficiosamente não incluem, nem poderiam incluir (sublinhado no original) participações supostamente existentes através de intermediários mais ou menos dissimulados". Quanto ao Relatório concluía que mesmo que se viesse a provar que certas aquisições de acções do BTA pela Títulos Lusitanos tivessem sido efectuadas no interesse do Banesto, "ainda assim não se verificaria o requisito de ordem quantitativa de que dependeria a obrigatoriedade de lançamento de uma oferta pública de aquisição".
Subsequentemente e até Maio de 1993, a minha intervenção foi de carácter legislativo e pedagógico pelas razões que já referi.
A partir de Maio de 1993 as vertentes de Estado accionista e Estado regulador interferiram uma com a outra, pois a falta de transparência da situação accionista do BTA prejudicou a projectada operação de colocação das acções do BTA detidas pelo Estado na Bolsa de Nova York.
Daí a insistência que puz junto das duas entidades supervisoras, - Banco de Portugal e CMVM, - no sentido de um total esclarecimento da estrutura accionista no BTA, com especial incidência no caso das participações indirectas.
De facto, as participações directas haviam sido objecto de um relatório da Comissão de Acompanhamento de Reprivatizações entregue em 20 de Julho de 1993 que concluíra que apenas a estas se referia o Decreto-Lei nº 170-B/90, de 20 de Maio. Sendo assim, referia o relatório, uma actuação pela via judicial não surtiria efeito útil, além de poder ser desestabilizadora para a instituição de crédito e para o mercado de capitais.
A insistência que fiz junto da CMVM deu origem a um relatório que me foi entregue em 23 de Agosto de 1993 e que concluiu que, a eventual ilegalidade das aquisições das participações indirectas, determinando a nulidade dessas aquisições afastaria sempre a obrigatoriedade de uma OPA.
A insistência que fiz junto do Banco de Portugal não obteve qualquer resposta até à tomada de posse do meu sucessor em 7 de Dezembro de 1993.
Em face desta situação não me competia obviamente substituir a entidade de supervisão no exercício das suas funções próprias tanto mais que eu havia promovido a publicação da Lei que definia claramente essas mesmas competências.
Havia, no entanto, que evitar que o prevaricador pudesse beneficiar das ilegalidades cometidas.
Na linha de actuação que me norteou, a minha intervenção devia continuar a ser legislativa e pedagógica, pelo que promovi a elaboração do que veio a ser o Decreto-Lei nº 380/93, de 15 de Novembro, o qual, no seu artigo 4º, nº 1, estabelece que "nas sociedades cuja reprivatização não se encontre totalmente concluída e que sejam instituições financeiras, os actos de aquisição de participações qualificadas nos termos previstos nos artigos 102º e 103º do Regime Geral das instituições de crédito e sociedades financeiras...ficam igualmente dependentes da autorização expressa do Ministro das Finanças". De qualquer forma, e para evitar que esse diploma fosse pretexto de regovernamentalização, a fiscalização do cumprimento do mesmo foi deixada à competência da CMVM (artigo 5º).
Paralelamente, aproveitei uma visita a Madrid, em 25 de Outubro de 1993, para expor ao então meu homólogo espanhol a natureza da solução encontrada e lhe reafirmar a firme determinação do Governo português em fazer cumprir as Leis da República. O Ministro espanhol mostrou-se conhecedor da situação do Banesto e manifestou-me todo o seu apoio para encontrar uma solução que respeitasse os príncipios éticos postos em causa por eventuais simulações.
Em face do desinteresse que julguei existir por parte do Banco de Portugal no prosseguimento de uma actuação autónoma, determinei, em 3 de Dezembro de 1993, o envio do processo BTA/Banesto à Procuradoria-Geral da República, o que veio a ser executado pelo meu sucessor.
Analisando agora a minha intervenção e os parâmetros que a nortearam registo que a estabilidade do mercado de capitais se manteve e que se evitou a governamentalização da supervisão. Ao verificar a inibição de votos em que alguns dos accionistas tinham incorrido na Assembleia Geral do BTA em Março de 1994, o Banco de Portugal acabou por exercer a sua função.