O terceiro R
Jorge Braga de Macedo
Cabe uma auto-crítica suave no 1º de Maio. Os dois Rs da coluna
anterior, a Revolução de 1974 e a Revisão
de 1989, chegam para perceber os passados 30 anos mas não os futuros. Proponho
um terceiro R, que julgo ter essa virtualidade, até porque mergulha na
antiguidade clássica inspiradora de Os Lusíadas. Veremos se o engenho e
a arte do grande Camões me ajudam, cantando, a espalhar mais este R por toda a
parte.
O terceiro R, afinal primordial, vem de República. Não primordial por
continuar uma série iniciada em 1910, que deu quatro revoluções em menos de um século.
Nem primordial por conter as referências políticas da esmagadora maioria dos
portugueses. Afinal referências políticas esmagadoramente maioritárias podem
esconder indiferença perante a coisa pública (que é, vale lembrar, o
significado do terceiro R em latim) e a República Portuguesa não está decerto
sózinha nesse continente das referências políticas vazias.
O terceiro R é primordial por causa da permanência no debate político
nacional daquilo a que já chamei “mitos republicanos, láicos e socialistas”.
Como a conotação caseira acaso sugere, tais mitos entroncam na revolução
francesa e na filosofia das luzes, subscrevem à ideia marxiana da religião como
ópio do povo e enaltecem a igualdade uniformista do socialismo real, tendo aceite
o frentismo soviético até à queda do muro de Berlim.
Longe de puramente geopolíticos, os “mitos republicanos etc” têm implicações
socio-económicas de monta : ignoram que a liberdade financeira presente é
o seguro da liberdade política futura e desprezam a multiplicidade das pertenças
dos povos numa obsidiante procura identitária.
Em vez de “mitos republicanos, etc”, proponho no dia de festa dos trabalhadores
(bem me lembro do comício de há trinta anos para os lados do Areeiro, onde tais
mitos se produziram com exuberância) uma expressão que quadra melhor com o
título desta coluna: tropismo
republicano. É uma expressão mais neutra, porque importada da
bioquímica, mais precisa, porque no singular,
e mais compacta, porque se fica por um só adjectivo, tirado do terceiro R.
Além disso, tropismo republicano
fala francês ao ponto da filósofa Chantal Delsol considerar o terceiro R “uma
questão francesa” (PUF, 2002). Mas em Portugal, que lo hay, lo hay. O
tropismo republicano português considera que o terceiro R é “a moral da
política”, da qual decorre uma igualdade uniformista, que despreza o homem
concreto em favor de uma hipotética tabula rasa perfeitamente ilustrada
pelos discursos que Michelet fazia aos futuros professores – para não falar já
no “bom selvagem”...
Tal como há cem anos, o tropismo republicano mantem-se contra a vontade do
povo. Isso mesmo – aqui não cabe auto-crítica – o terceiro R tem mais a ver com
a república nobiliárquica de Veneza do que com a regra da maioria. Os
professores do terceiro R julgam o povo “pobre e mal agradecido” quando prefere a liberdade e a solidariedade concretas à
democracia “popular”. Assim aconteceu durante ciclos virtuosos que
contribuiram para a lusofonia como bem comum – e devem continuar a contribuir, esquecendo
velhos tropismos e pondo a república no lugar de aluno e não de professor da
democracia.