TÓPICOS DO DEPOIMENTO À COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO AO ACORDO ESTABELECIDO ENTRE O ESTADO E O SENHOR ANTÓNIO CHAMPALIMAUD

· Apreço, pessoal e institucional, pelo papel do parlamento na responsabilização (accountability) democrática, uma das 3 "regras de bom governo" invocadas no relatório de preparação da Conferencia Inter-Governamental (referida em várias publicações desta casa e internacionais, ao lado da "proximidade do cidadão" e da "legitimidade nacional") e consequente aceitação da presença de jornalistas durante as audições;
· Identificação, pessoal e profissional, com os valores de protecção nacional do direito de propriedade e abertura internacional dos mercados como condições da convergencia real.

Enquadramento Político: A Política Económica Global do XII Governo

Os valores da propriedade privada e da globalização estavam subjacentes aos pilares da Politica Económica Global constantes do programa do XII Governo, e foram desenvolvidos no Programa de Convergencia Q2 (Novembro 1991), nos Orçamento do Estado para 1992, 1993 e 1994, no Programa de Convergencia Revisto (PCR, Novembro 1993), no Acordo de Rendimentos e Preços para 1992, na contribuição portuguesa para o Livro Branco comunitário sobre crescimento, competitividade e emprego (Setembro de 1993) e noutros documentos publicados pelo Ministério das Finanças em Política Económica Global: Os Primeiros Seis Meses e Política Económica Global para 1993.
São três esses pilares:
· rigor orçamental,
· concertação social (liderança do sector publico na moderação salarial e financeira), e
· políticas financeiras e estruturais (estabilidade e convertibilidade plena do escudo, apoio à restruturação e internacionalização empresarial, privatizações e função accionista do Estado)
Desde 6 de Abril de 1992, o princípio da não acomodação a choques inflacionistas passou a ter conteúdo comunitário, respeitar as margens de flutuação do SME.
Desde 16 de Dezembro do mesmo ano deixou de haver restrições aos movimentos de capitais.
O rigor orçamental foi fortemente impulsionado por reformas realizadas entre 1985 e 1990, nomeadamente a reforma fiscal e a lei organica do Banco de Portugal. As privatizações, tornadas possíveis pela revisão constitucional de 1989, arrancaram depois da lei quadro de 1990.
· A liderança do sector publico na moderação salarial e financeira,
· a explicitação da função accionista do Estado,
· o apoio à restruturação e internacionalização empresarial e
· a convertibilidade plena do escudo
São elementos decisivos da Política Económica Global de qualquer democracia avançada introduzidos em Portugal enquanto era Ministro das Finanças. Tal como os outros pilares da Política Económica Global, mantiveram-se desde então e há cada vez menos sinais sinais de que venham a ser alterados.
Ouvem-se apenas queixas de que ainda não são suficientemente sólidos - em especial porque as reformas estruturais pararam a meio da anterior legislatura, porque
· o anterior governo se revelou incapaz de alargar a base de apoio para as reformas exigidas para ganhar credibilidade externa;
· as ameaças de dissolução da Assembleia da República exacerbaram a instabilidade interna trazida pela recessão europeia. Descrevi a interacção entre credibilidade externa e estabilidade interna num trabalho (Nova Economics Working Paper nº 259 de Setembro de 1995) cuja tradução portuguesa está para saír na Análise Social.
Contudo estas opções de política pública têm raízes éticas e profissionais antigas, encontrando-se reflectidas quer em trabalhos académicos (como a monografia A Divida Externa Portuguesa, publicada pelo Ministério das Finanças em 1970) quer na concepção e aplicação dos mecanismos comunitários de supervisão multilateral (enquanto director das economias nacionais na Comssão Europeia entre 1988 e 1991).
Posso acrescentar que a experiencia portuguesa da mudança de regime económico entre 1989 e 1992 tem sido, por seu lado, apreciadíssima nos países do Leste europeu e da ex-União Soviético onde tenho trabalhado por conta do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento em Londres. Por ex. parto amanhã para a Eslovénia.

Função accionista do Estado e concertação estratégica

Este enquadramento é essencial para perceber a minha convicção profunda que a mudança de regime em Portugal em direcção à estabilidade financeira obrigava a uma concertação estratégica entre o Estado, os grandes grupos económicos e os sindicatos, os quais ganhavam, cada qual a seu modo, com a inflação.
Hoje é trivial dizer-se que a inflação é um imposto escondido e regressivo, ao passo que durante o debate em plenário sobre a harmonização do IVA a afirmação era nova, e não terá sido entendida. Quer simplesmente dizer que os sindicatos, que representam os que têm emprego, e os empresários, sobretudo os que têm poder de mercado, conseguem passar o imposto inflacionista para os mais desfavorecidos, e portanto preferem-no a um imposto explícito.
Era necessária a confiança e essa não podia reduzir-se aos membros do patronato com assento na Comissão Permanente para a Concertação Social, a que eu presidia por delegação do Primeiro Ministro.
Na minha perspectiva, a confiança exigia referências positivas (role models) que os presidentes das confederações nunca poderiam representar para os portugueses. Já empresários fundadores dos grandes grupos económicos privados portugueses vítimas das nacionalizações poderiam constituir esses role models - em Portugal, como em qualquer parte do mundo.
A administração financeira do Estado, por seu turno, estava habituado ao financiamento monetário, abolido pelo Orçamento do Estado para 1992, e portanto não tinha pressa. Acresce que os responsáveis tinham consciencia do peso de vinte anos de liderança do sector público na imoderação salarial e financeira, refrescada aquela pelo Novo Sistema Redistributivo e esta pelos controles de capitais que elevaram as taxas de juro dos Bilhetes do Tesouro acima de 20% ao ano .
A necessidade urgente de não permitir que a concertação social fosse pretexto para manter a cultura inflacionista dos parceiros sociais e da própria administração pública foi imediatamente expressa ao mais alto nível do Governo. Cabia-me completar uma mudança de regime iniciada com a revisão constitucional mas posteriormente esquecida.

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Como sempre, na base destes desígnios macroeconómicos estavam pessoas concretas. Pareceu-me desde o início que era necessário ganhar a confiança dos grandes grupos económicos privados portugueses e dos seus empresários fundadores. O anterior governo já havia iniciado as privatizações, importava agora demonstrar aos que haviam sido espoliados no 11 de Março que, no respeito da lei, eram benvindos os seus investimentos.
Desenrolei essa acções nos fins de 1991 e princípios de 1992, durante a Presidência portuguesa da Comunidade Europeia. Tinha o apoio do Primeiro Ministro e obtive reacção favorável por parte dos interessados.

O caso vertente

O caso vertente foi, ao mesmo tempo o mais simples e o mais complicado. O caso mais complicado porque estamos aqui. O caso mais simples porque a minha intervenção política se resumiu a três conversas a sós, sem actas nem testemunhas. Felizmente que envolveu pessoas de bem para as quais a palavra é mais importante do que a prova documental.
· A primeira conversa teve lugar no Ministério das Finanças umas horas antes de eu tomar posse, com o meu predecessor. O único "dossier"que ele me transmitia por resolver foi o da comissão arbitral relativa ao litígio com o grupo Champalimaud. Fiquei alertado para o facto e decidi procurar uma solução pacífica ao litígio, eventualmente, pelas razões já indicadas, um acordo de cavalheiros que pudesse revelar confiança nacional e internacionalmente.
· A segunda conversa foi com o Sr. António Champalimaud que tomei a iniciativa de conhecer em casa de pessoas amigas em principios de Janeiro de 1992, e a quem perguntei se estaria interessado numa solução pacífica, ao que ele respondeu que sim. Combinamos entregar os detalhes a especialistas da nossa confiança e reunirmos de novo quando estivesse à vista o tal acordo de cavalheiros.
· A terceira e última conversa teve também lugar no Ministério das Finanças â 13 de Abril de 1992, durante um pequeno almoço com o Sr. António Champalimaud em que acordamos na solução proposta pelo Secretário de Estado das Finanças, com a qual eu concordara mas que tentei ainda melhorar. Não tendo sido possível ir além do que fora acordado tecnicamente, considerei encerrado o caso e disse-lhe para executar a função accionista do Estado, nos termos da lei.

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Sei que posteriormente houve desavenças entre o Sr. António Champalimaud e o Secretário de Estado das Finanças. Mas, pela parte que me toca, neste caso o Secretário de Estado das Finanças actuou de forma eficaz e leal, tendo sabido aproveitar a total liberdade que lhe dei para encontrar um instrumento jurídico-financeiro adequado.
Ou seja um instrumento que permitisse atingir o objectivo de um acordo de cavalheiros que ambas as partes (eu enquanto guardião da função accionista do Estado e o Sr. António Champalimaud enquanto potencial investor estratégico numa economia portuguesa aberta ao exterior e em que se respeita o direito de propriedade) considerassem preferível ao processo arbitral iniciado pelo governo anterior para resolver o litígio e que estava a decorrer quando tomei posse.
Em correspondencia posterior, o Sr. António Champalimaud achou que eu devia tê-lo favorecido mais. Pela minha parte tenha a convicção de que, se tivesse conduzido o assunto directamente com ele, teria conseguido reduzir mais ainda a indemnização...
Nunca saberemos quem ganhou mais com esse acordo de cavalheiros, se os contribuintes presentes e futuros, se os accionistas do grupo.
Certo é que ambos nos mantivemos fieis à confiança na palavra dada inicialmente.
Cinco anos depois, sinto pelo empresário português a mesma admiração que senti quando o conheci e mantenho a mesma independencia que sempre mantive relativamente aos seus interesses. É público o que ele diz pensar a meu respeito.

Jorge Braga de Macedo
18 de Fevereiro de 1997