Globalização: uma perpectiva nacional
Jorge Braga de Macedo
Professor catedrático da Faculdade de Economia
da Universidade Nova de Lisboa
Introdução
Proponho uma perspectiva económica sobre a globalização assente no interesse nacional. Trata-se, pois, da "nossa" globalização. Desenvolvo as mesmas ideias num livro intitulado Bem Comum dos Portugueses, escrito em coautoria com José Adelino Maltez e Mendo Castro Henriques. Na minha perspectiva, este encontro tão oportuno deve ajudar a desmistificar a "nossa" globalização, independentemente de se gostar ou não do mito em causa. Por exemplo, eu quero a Europa melhor e Portugal dentro dela muito "nobre e sonhador" como dizia um fado que julgo ser da jovem Amália Rodrigues, artista que encarna bem o nosso espírito global ao longo das últimas décadas. Mas o ponto essencial é percebermos que a nossa autonomia cultural depende de nós próprios enfrentarmos os desafios concretos. Enfrentar desafios abstractos que depois não se verificam ajuda a mistificar. Para distinguir os desafios uns dos outros, é preciso cultura. Não apenas a cultura tradicional, associada aos chamados "intelectuais de esquerda", mas a cultura económica, que muitos ainda desprezam, embora cada vez mais fingindo conhecer. Não estou a pensar em ninguém em particular, mas, como dizia o outro, que los hay los hay.
Cultura
A cultura económica mudou muito nos últimos 20 anos, regressando de certo modo àquilo que tinha sido a cultura económica tradicional, designadamente no século XIX. Isto não tem conotações ideológicas. Apenas o bom-senso de que o poder económico dos Estados é muitas vezes utilizado para guerras e portanto deve ser limitado. O poder de decidir, quer de guerras no sentido militar, quer de guerras monetárias, como roubar às pessoas o seu poder de compra através da desvalorização cambial sempre teve limitações na história portuguesa e nos países com os quais nos comparamos.
Basta lembrar as Cortes: para quebrar moeda o rei tinha de ouvir uma assembleia com representantes de todo o reino, embora não tivesse de seguir a opinião das cortes. Ora bem, sempre existiram limitações ao poder do Estado fazer guerras, sejam elas guerras propriamente ditas ou agressões financeiras. Estas limitações fazem parte da cultura europeia, e, com a criação da moeda única, estão de volta. Não há dúvida que o regresso destas limitações demorou um pouco em todos os países europeus excepto na Alemanha. Contudo nos anos l980 lá foram um a um regressando à estabilidade dos preços. Ironicamente os países mais pobres tiveram mais tempo a ilusão de que poderiam eventualmente utilizar instrumentos de política económica como a desvalorização cambial para bem da população. Ora, pelo contrário, quanto mais pequeno e pobre o país, menos ganha em desvalorizar. Certo é que as mudanças que se verificaram ocorreram mais devagar nos países mais pobres.
A Irlanda é um excelente exemplo, porque muitos economistas célebres se arrependem hoje do que escreveram sobre a Irlanda há uns anos atrás, quando acusaram o monetarismo das autoridades de agravar o desemprego. A Irlanda é agora a pérola, não só da Europa, mas do mundo em termos de crescimento com estabilidade. Foi o primeiro país a mudar de regime económico, por acaso num governo de minoria cristã-democrática em 1987.A Irlanda era membro do Sistema Monetário Europeu (SME) desde a sua fundação, para se separar da Inglaterra com quem tinha estado em união monetária durante muitos anos. Essa união monetária era bem diferente da actual zona euro porque oprimia a identidade política/cultural da Irlanda.
Portanto já se está a ver que para mim o euro não quer dizer transferir mais poderes para Bruxelas ou para Frankfurt, pelo contrário, a cooperação europeia só funciona desde que seja bem definida e portanto limitada, como se pretende que aconteça na zona do euro. No caso da Espanha, de Portugal, no próprio caso da Itália e no caso da Grécia, a entrada no SME foi equivalente ao país dizer: "eu aceito regras que me ultrapassam" tal como ultrapassam cada um dos outros membros. Já não é um funcionário, um gabinete, a decidir se vai mudar o valor da moeda ou não, um pouco como as Cortes de outro tempo. É antes uma reunião de pares, altos funcionários do Tesouro e dos Bancos Centrais, que discutem entre si o que se vai passar quanto ao valor das moedas todas. Não é um sistema ideal, mas funciona. Pelo menos tem funcionado.
Política monetária e Supervisão
A mudança da cultura económica em favor da estabilidade é um dado adquirido. Será que está tudo bom na Europa? Não está. Temos aqui problemas. Curiosamente, não são aqueles que se pensava, como a instabilidade cambial. É antes o de não haver uma política monetária tão única como se pensava. Porquê? Precisamente pelo mesmo tipo de argumento que levou à evolução das cortes medievais e depois da experiência de das cortes e da cooperação monetária das últimas décadas.
Há aqui um problema de saber quem é que é responsável perante quem, que é um problema que se fala aqui da responsabilização e da independência nem as seis pessoas de várias nacionalidades mas que são supostas representar o interesse europeu. Por isso quem manda não é o Banco Central Europeu (BCE) mas é o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) que, além dos seis membros do BCE (cinco senhores e uma senhora), inclui os governadores dos onze Bancos Centrais nacionais. Acham que essas onze pessoas se vão despir das suas vestes nacionais tão facilmente quanto isso? Está bem governador dos bancos nacionais para administrador do SEBC? Claro que não!
E portanto a ideia convencional dos economistas e das pessoas que se interessam por estes assuntos, dos participantes no mercado, de que vamos ter uma política monetária muito centralizada e uma política orçamental muito descentralizada é exagerada! Virá a ser assim? Pois virá com certeza. Não é assim agora. E portanto há aqui uma fonte de incoerência entre política comunitária e orçamental que não vai ser tão forte como se receava.
Ora esta ideia da política monetária única é, na ideia que tenho, incorrecta. E é pena, numa altura de crise internacional. Tanto mais que há uma competência para além da política monetária, que fica inteiramente nacional e que é a competência mais importante, a da supervisão. Controlar as falências bancárias. problema gravíssimo neste momento como a América nos ensina e a Ásia. Essa competência fica nacional. Não sabemos qual é o modelo e se tiver que passar para a união não é fácil, não tem havido debate sobre esta matéria. Há resistências, e para passar para a globalidade, novo problema, a instituição mais própria para o fazer seria o Fundo Monetário Internacional (FMI), contudo não tem perícia nessa matéria. A perícia existe no Banco de Pagamentos Internacionais (BIS) que está em Basileia e que ninguém pensa em trazer para as capas dos jornais.
Arquitectura
As referências ao FMI e ao BIS servem para introduzir a discussão a que se tem assistido sobre a arquitectura do sistema financeiro internacional. Não às referências meio gaulesas a dizer que o FMI tem de ser mais político, porque o FMI não pode ser político e manter-se como FMI. Portanto temos aqui um problema que é o de não haver instituição na área que mais precisa de ter uma regulação global.
Há quem diga que se tem de criar uma instituição nova e tudo isso leva tempo e a instituição tem de dar as suas provas. Reparem portanto que, mesmo na área em que se pensa que havia alguma centralização, que é o caso do euro, ela ainda está muito longe de ocorrer!
Qual é o lado bom? É que não há descoordenação com a política orçamental, desde que haja cultura de estabilidade. Qual é o lado mau? É que estamos numa borrasca, estamos num momento de instabilidade internacional que exige mecanismos de gestão da crise também globais, não apenas europeus.
O euro estava a ser criado num período de relativa estabilidade. Então se os países fizeram este esforço todo para trazer a estabilidade dentro deles, agora está a instabilidade lá fora. É exactamente isso que aconteceu. Vai ser ainda mais perturbador.
Estamos aqui perante uma assembleia de personalidades que não são todos, nem na maioria, economistas profissionais ou seguidores do mercado e todos têm consciência que, enquanto não aparecerem as notinhas com o euro, vai haver a ilusão de que não é moeda. Ora também perdemos a memória do tempo em que era o ouro. O ouro era de qualquer país, vivemos já durante oitenta por cento ou mais da nossa história, com uma moeda internacional que era o ouro. Lá tinha uma cunhagem que era feita localmente com um retrato. Enquanto não houver notas do euro, o euro não vai parecer real, embora o seja. Só que não se pode mudar a sensibilidade das pessoas. Portanto há aqui problemas que se vão manter durante uns anos antes de podermos ter a certeza de que isto funciona.
Economia
Já falei na crise dos mercados emergentes, e depois há aqui um assunto que é muito importante também e que deve ser tomado com muito cuidado que é a perda da autoridade do raciocínio económico. Será aliás a minha conclusão. Penso que muitos aqui na sala saberão que houve uma dificuldade com um fundo de investimento chamado LTCM que era muito conhecido porque tinha lá os dois Prémios Nobel da Economia do ano passado. São pessoas de enorme estatura científica e que foram consultores desse fundo, é perfeitamente razoável, normal e até desejável.
Mas não há dúvida que a crise internacional, por um lado, esse fenómeno particular do fundo de investimento que se dizia que era inteligente demais para ir à falência (trocadilho com dizer-se que há bancos grandes demais para ir à falência, este era "too smart to fail"). Foi socorrido por outros bancos, seus clientes.
Toda esta questão, a crise das economias asiáticas que estão a passar pior do que passou os Estados Unidos nos anos 30, se tem desenrolado com a complacência completa da Europa.
O Presidente do BCE já falou da Europa como um oásis, expressão devida a outro artista que encarna bem o nosso espírito global não ao longo das últimas décadas mas no início do século que é o poeta Fernando Pessoa ("Há um oásis no Incerto \ E, como uma suspeita \ De luz por não-há-frinchas, \ Passa uma caravana"). Houve, evidentemente, outros utilizadores daquela palavra.
A perda de autoridade da ciência económica é tanto mais grave quanto é certo que nunca houve tantos economistas de absoluto primeiro plano em posições de decisão nos Estados Unidos, nas organizações internacionais como neste momento. Portanto nós sentimos aqui que há qualquer coisa que deve ser feita, mas não convém emendar quando a emenda é pior que o soneto. Isso é que vamos tentar evitar. É meu dever fazê-lo e digo-vos sinceramente que o inimigo é a atitude pública à volta dos economistas, o cepticismo que se verifica à volta do poder da ciência económica para resolver problemas.
É assim, é a vida e temos que o aceitar, mas uma maneira de lutar contra esse cepticismo é ser mais cautelosos com aquilo que a ciência económica nos permite dizer e com o que não permite dizer, e se depois um Prémio Nobel perde dinheiro e tem menos prestígio pois paciência. Não vamos também agora aqui, entre pessoas polidas, aproveitar para por causa do crime do Padre Amaro deixar de ter a religião dos nossos pais ou avós, ou a nossa própria. Portanto este ponto é óbvio e não quero insistir nele, em todo o caso penso que nem sempre é claro. Faz parte outra vez dos tais casos de desmistificação, tão importantes entre nós.
Desmistificar ideias feitas. Esta é uma delas. Realmente umas vezes acredita-se de mais nos economistas, outras acredita-se de menos. Neste momento continuo a pensar que as soluções para a crise global vão partir da cultura da estabilidade, da gestão da crise internacional e não de restrições à liberdade do movimento de capitais ou de bens, e não em ideias de alterar, mudar o mundo, como se o mundo fosse diferente daquilo que tem sido. E por isso é que a evolução institucional e os benefícios da cooperação nos vão permitir ultrapassar esta crise dou até aqui algumas sugestões sobre técnicas de gestão de risco que só não têm sido adoptadas porque não tem sido lucrativo para os bancos fazê-lo. Ora bem, agora que os lucros estão a apertar evidentemente que a capacidade que um banco terá de dizer eu giro o risco transparentemente tem uma grande vantagem, tanto mais que não tem havido volatilidade nas principais taxas cruzadas, portanto o problema até agora, apesar de tudo não se manifestou e há toda a possibilidade de que estes riscos que são riscos verdadeiros serão ultrapassados.
Reformas
Um ponto lamentavelmente é conhecido também entre nós. Os políticos eleitos, isto é geral nas democracias, e depende um pouco da maneira como interagem com os empresários e com a sociedade civil que tem sido uma maneira difícil em muitos países tem que se reconhecer, não só no nosso. A tendência para o político é ser aquilo que um autor americano chama um vendilhão da prosperidade. Vem aqui, fala muito bem, muitos sorrisos, muito diálogo, muitos apertos de mão, mas o certo é que a última coisa que vai fazer é uma reforma que cause impopularidade. Eu explico o caso, faço-o com todo o à vontade. A peça que explica isso melhor é uma peça sobre a Reforma da Função Pública feita pelo Dr. Oliveira Salazar nos anos 30 e obviamente que a estou a citar apenas porque se trata de um autor português, porque isto vem em todos os livros de Public Choice que podem comprar em Londres ou em Nova York, mas o ponto é muito simples. É que ninguém sabe muito bem o que é que se faz com os impostos.
E por isso quando se diz que temos que ter sectores estratégicos, se é: Quem é que paga, é o Senhor? Não, é ali o vizinho. Ora bem, então está aí o ponto. O vizinho!
Quando há fundos para gastar, sabemos muito bem que os grupos melhor organizados vão gastá-los melhor. É assim para os consumidores, é assim em tudo. E tem a ver com a proximidade do controlo sobre a despesa por oposição à da receita. É assim, não tem nada de mau.
Agora. dou um exemplo político, mas que não diz respeito, a reforma destas palestras. Falo longamente, com eloquência e há uma altura em que decido que que agora este grupo que está à minha esquerda já não tem luz e não vê os slides, enquanto que o grupo da direita vê. Bem, admitindo que estão interessados na exposição, este segundo grupo fica melhor do que o outro. Porque uns estão no escuro e outros vêem a exposição. Vai haver aplausos deste lado? Silêncio e eventualmente um ou outro a dormitar como já estava antes. Mas os que deixaram de ver, vão protestar. Portanto, quem beneficia de uma reforma cala-se, não vem para a rua dizer, "que extraordinário governo temos...". Mas quem é prejudicado queixas-se.
Portanto, conclusão, se não queres problemas, fala de reformas, mas não as faças. É um ponto conhecido o que descrevo aqui. Há uma literatura e curiosamente Salazar fala nisto a respeito da função pública. Porque é que ele não foi mais longe, não mudou as letras, não fez mais reclassificações? "Não, não, nada disso, olhe aqueles que vão ser prejudicados vêm para a rua fazer barulho, agitam as massas. Os outros ficam calados. E acho que foi de facto a última reforma da função pública portuguesa nos anos 30. E não houve mais. Houve tentativas mas não surtiram efeito. Aqui está, o medo de perder uma posição numa democracia é o que leva o governante a não ousar fazer uma reforma. E é racional, não estou a criticar. Até se aplica quando não há partidos, como mostra o exemplo de Salazar.
Mercados emergentes e pressão dos pares
Na crise, só duas rapidíssimas definições, o problema dos mercados emergentes que nós aliás fomos até há poucos meses. Os chamados mercados emergentes são países em que se não acredita ainda que sejam verdadeiramente estáveis. São estáveis durante um certo tempo, mas pensa-se que aquilo vai mudar. Portugal já passou por aí. Já teve que dizer: "Nós somos estáveis!". respondem-nos "Não" qualquer dia vêm aí outras nacionalizações, vem aí outro 11 de Março, vocês não se entendem, vocês não são capazes"! Muitas vezes é a nossa própria memória colectiva que ajuda a dar essa visão. Muitas vezes não são os outros que pensam assim, somos nós e como tem sido o caso de Portugal.
Só quero aqui ter um bocado de cuidado com as diferenças que têm os mercados emergentes uns dos outros. Diferenças radicais que devem ser tidas em conta. Não se pode generalizar para a crise global.
Há sempre a mania da crise, mas uma crise financeira é diferente de uma crise apenas cambial, de uma crise da dívida ou de uma crise bancária. E se se trata de uma crise nacional, será possível ser só nacional? Provavelmente não. Mas então se for regional, como é que a faz? Não há mecanismos. E global ainda menos, pelas razões que referi. Falou-se aqui nos blocos, a razão da gravidade desta crise é que há o bloco japonês que não está a resolver (está antes pelo contrário a contribuir para) a crise e isso desequilibra completamente a situação. A Europa está indiferente, diria, e portanto o que nós temos neste momento é um agravamento da crise porque há apenas uma parte, e não é por acaso que o Brasil se está a aguentar .É que realmente há um pólo que está a ter hegemonia e que está portanto a controlar o contágio, e há o bloco asiático em que o país hegemónico é ele próprio parte do problema e há o bloco europeu em que não se passa nada.
Não se passa nada, porque há um bloqueio das reformas em toda a parte. E no próprio governo alemão isso já tem sido notado que muitas das reformas económicas que eram necessárias e que se pensava que o anterior governo não fazia porque estava muito cansado, esgotado, etc. Enfim, lembram-se concerteza desta argumentação. Porque é que isto é grave? Porque mesmo que eu acreditasse que restrições aos câmbios ou ao comércio pudessem resolver o problema, por acaso acho que não, elas tinham que ser temporárias e tinham que ser bem administradas. Quem é que as administra? Se não há capacidade para as coordenar, não há maneira de as administrar. E vem aqui agora uma crença, talvez singular, na pressão dos pares.
É que eu penso que apesar de todos os seus defeitos os mecanismos europeus funcionam. Têm mostrado que funcionam, se não forem federalizados demais, nem descentralizados demais. E na área monetária por acaso até têm funcionado. Na área da supervisão não é assim, já o disse, mas acho que funcionam, acho que é o melhor que temos. Por que é que é o melhor que temos? Porque reparem, se esta tendência para as reformas se verifica verdadeiramente, eu penso que é da natureza das democracias mediáticas. Qual é a minha única esperança? Já sei que, se fecho a luz para ali, temos um problema porque berram os de fora mas os outros não aplaudem, antes ficam em silêncio. Mas agora suponham que eu vou a Bruxelas e conto esta história aos outros que são iguais a mim, que têm exactamente a mesma experiência. Se calhar eles vão dizer, olhe que o que eu fiz foi isto e há outra maneira e faça dessa maneira; pode dar para o bem e pode dar para o mal. Agora há um outro nível no qual isso se discute e isso é bom. Isso é muito bom. Não resolve tudo, não, mas resolve um bocado, e, na minha perspectiva, a esperança é por aí.
Por isso é que eu acho que não é um federalismo exacerbado, mas sim a continuação e o aprofundamento da coordenação, quer a nível europeu, quer depois a nível global com os mesmos métodos, que vai permitir à Europa contribuir apesar de tudo para resolvermos esta crise. Como já disse, neste momento em várias partes do mundo está a ser altamente ameaçadora dos padrões de vida e dos valores em que assentam uma economia de mercado e a democracia.
Retira -se daqui que os Estados Unidos têm tido um papel de liderança quer do seu bloco quer do mundo, em parte porque a Europa considera que não está afectada por esta crise, o que é um erro, porque está ou vai estar. A baixa das taxas de juro mostrou realmente a capacidade que os americanos continuam a mostrar de antecipar e de resolver os problemas. Portanto apanham um choque maior, mas também reagem mais e mais depressa.
E finalmente uma observação necessária: ouve-se mais o que dizem os economistas porque numa crise global eles, têm menos capacidade de afectar as decisões. É assim e temos de o aceitar e eu aceito-o com tranquilidade. A tentação do economista de aparecer como bombeiro não é correcta. O papel do economista, com base na ciência que conhece, é realmente o de mostrar os perigos das soluções alternativas. Isto é, se por acaso nós agora restringirmos os movimentos de capitais, se por acaso dissermos que vamos ter este sector estratégico e mais este e mais aquele, não vão ser as gerações futuras a pagar? Vão. E nós sabemos quantificar isso? Ou quando se consegue quantificar ou quando não se consegue quantificar? Aí há consensos contra economistas profissionais e isso pode ajudar cada um de vós a tomar posições.
Nunca vai ser simples. Agora fechar as economias umas sobre as outras não é a maneira de promover a autonomia cultural nem a "nossa" globalização.
As empresas portuguesas e a globalização dos mercados
Este tema está "na berra" servindo até de título a um livro, publicado por uma associação de empresas portuguesas viradas para a internacionalização, chamada Forum Portugal Global, em associação com ICEP e IAPMEI.
Vale lembrar que, quando surgiram os primeiros incentivos à internacionalização empresarial no orçamento do estado para 1992 (os chamados FRIEs), havia que convencer os responsáveis das empresas não financeiras que a competitividade global estava ao seu alcance e que podiam viver sem o ciclo infernal inflação-desvalorização. Poucos decerto se lembram disso agora, até porque foram escassos os resultados de inúmeras reuniões com empresários de Norte a Sul do país. Era a psicologia da crise, que acabou por se auto-justificar.
Como economista interessado pela história da nossa cultura económica e dos mitos monetários a ela associados, lamento o esquecimento da recessão de 1993-94, porque não será decerto a última.
Além disso, os empresários portugueses têm bons motivos para desconfiarem da continuidade das políticas económicas: conhecemos quatro revoluções vitoriosas que alteraram radicalmente o contexto institucional, geralmente com repercussões graves nas famílias e nos empresários.
Mais, os mercados internacionais acreditaram na mudança de regime em direcção à estabilidade e à convertibilidade que abriu caminho para a participação das empresas portuguesas na globalização de mercados uns dois anos antes dos parceiros sociais e da própria sociedade civil.
Mas, esse mesmo esquecimento permite realçar ainda mais um grande consenso quanto à vantagens da internacionalização empresarial para as empresas portuguesas, grandes e pequenas. A internacionalização empresarial é vista como um indicador seguro da maturidade da economia de mercado construída em Portugal desde que, em 1989 se aceitou finalmente a reversibilidade das nacionalizações decretadas após o 25 de Abril de 1974. Este acto fundador da mudança de regime económico e financeiro em Portugal em direcção à estabilidade ocorreu depois de se registarem eleições livres na Polónia e na Hungria. Contudo, ainda muito boa gente em Portugal - e até economistas mais treinados no planeamento central do que no mercado aberto - tinha medo que lhe dissessem que estava a pensar no 24 de Abril de 1974.
Quase dez anos volvidos sobre essa aposta ganhadora no respeito dos direitos de propriedade em Portugal, já se aceita também sem grande debate a aposta subsequente na abertura dos mercados às trocas de bens, serviços e capitais. Esta abertura, que caracterizou a segunda metade do século XIX, foi interrompida quando Portugal saíu do padrão-ouro em 1891. Apesar de promessas em contrário em 1910 e 1931, só foi re-iniciada coma a adesão há quase 50 anos à União Europeia de Pagamentos, continuada com a criação da Associação Europeia de Livre Câmbio em 1960, com a associação em 1972 e adesão em 1986 à Comunidade Econnómica Europeia e consagrada com a restauração da convertibilidade de escudo em fins de 1992, cinco anos antes do prazo limite acordado com Bruxelas.
Para quê então regressar agora ao debate de 24 de Abril sobre se a globalização actual é melhor ou pior do que do padrão ouro, se é irreversível se não? Concordou-se que estava para durar, até porque a arquitectura comercial mundial está assente na Organização Mundial do Comércio não correndo os riscos de proteccionismo que ocorreram nos anos trinta.
Apesar do debate actual, a arquitectura financeira não ia com certeza renegar a liberdade financeira, antes escorá-la numa supervisão bancária mais eficas, feita pelo FMI, BIS ou o Forum para a Estabilidade Financeira proposto recentemente pelo G7 e presidido actualmente pelo Secretário Geral do Banco de Pagamentos Internacionais.
Conclusão: um projecto mobilizador?
Melhor será insistir numa ideia que surgiu numa sessão sobre esta tema no passado dia 24 de Abril em Bicesse, a de tornar a internacionalização empresarial um projecto mobilizador para os portugueses no início do novo milénio. A sugestão faz-se eco, julgo que sem querer, do que chamei a "nossa" globalização numa intervenção em Outubro passado no Instituto de Defesa Nacional, que adapto na presente.
Globalização que é nossa por reflectir estratégias empresarias compatíveis com as pertenças dos cidadãos, servindo por isso para prosseguir o bem comum dos portugueses. Parece cultural, e é, mas, não me canso de o repetir, a cultura não é inimiga da economia, antes pelo contrário. Isso é particularmente verdade em matéria de internacionalização - pessoal e empresarial.
A internacionalização é motor de desenvolvimento dos pequenos países europeus com mais tradições de estabilidade financeira, que são também os mais prósperos. Como a reputação financeira de Portugal é mais recente, a presença de empresas portuguesas no exterior também é limitada, mas o investimento directo das empresas portuguesas no estrangeiro tem assumido um ritmo crescente ao longo dos últimos anos, principalmente por parte das empresas maiores à escala nacional.
Claro que a globalização não é para todos os sectores nem para todas as empresas. O que interessa mais é que o serviço ou o produto seja disponibilizado da forma mais eficiente possível seja por fornecedores nacionais ou estrangeiros.
A globalização pode pois agudizar conflitos entre empresas ou mesmo na escolha da estrutura económica. Por exemplo empresas que fornecem produtos numa situação de monopólio, como a electricidade ou serviços telefónicos, podem maximizar os recursos para participarem directamente no processo de internacionalização. Alternativamente, podem transferir esses recursos via tarifas e preços mais baixos, reduzindo assim os custos de produção de todas as empresas. Naturalmente, o equilíbrio entre estes objectivos, como reflexo que é do bem comum dos portugueses, não é de hoje. A internacionalização torna-o incontornável.
O apoio público é importante para desenvolver a presença empresarial portuguesa em países ditos "plataforma", como Espanha, Brasil, Polónia, Marrocos, Tunísia, Moçambique e Macau. Nestes mercados faz sentido apoiar investimentos âncora que servam de testa de ponte para facilitar a entrada de empresas portuguesas de menor dimensão. Nesta situação justifica-se uma discriminação positiva a favor das grandes empresas, sejam elas públicas ou privadas.
Se ainda há poucos anos muitos empresários portugueses achavam a internacionalização mais distantes no futuro do que se revelou ser verdade, a administração pública, essa, não se adaptou ainda às necessidades da globalização, em parte porque o desenho institucional é també aí inadequado. Existem apoios por utilizar e há falta de coerência entre incentivos, como por exemplo os fiscais.
O livro As empresas portuguesas e a globalização dos mercados deixou propostas para actuação imediata, que constam do resumo e das saliento uma melhor coordenação interministerial especialmente entre os ministérios de economia, finanças e negócios estrangeiros; o aumento dos apoios de informação nomeadamente referentes às questões de rating aos códigos de conduta e aos apoios multilaterais para empresas mais pequenas; a flexibilização dos instrumentos, reduzindo a actual dependência da regulamentação comunitária.
O programa de acompanhamento da globalização empresarial (PAGE) para os próximos meses vai no mesmo sentido e aborda ainda questões como o negócio lusofono (caracteristicas especiais das economias lusofonas, a relação entre cooperação e actividade empresarial, a importância da lingua na definição ampla que inclua por exempo sistemas jurídico e de contabilidade e ainda o caso especial do Brasil enquanto mercado alvo para empresas portuguesas e enquanto parceiro na defesa da lusofonia em mercados terceiros); os riscos globais associados à actuação em novos mercados, num ambiente de maior volatilidade financeira; as oportunidades emergentes (recursos para apoiar o desenvolvimento empresarial em países emergentes, disponibilizados por organismos multilaterais, comunitários e bilaterais e formas práticas para ajudar as empresas a conhecer e aceder a esses recursos), as tecnologias de informação (internet, comércio electrónico e mecanismos de minagem de dados), etc.
Com o risco de abundar no óbvio, as empresas que recebem apoio directo são uma pequenissima minoria; para a maioria importa assegurar condições favoráveis à produtividade como baixas taxas de juros, inflação e fiscalidade e condições institucionais favoráveis como um sistema juridico funcional e legislação clara sobre por exemplo falências e regras laborais. Eu já disse que a timidez de certas reformas estruturais desde a recessão de 1993/94 pode levar ao esticão do euro, ou seja a não aproveitarmos esta extraordinária oportunidade para, finalmente, ousarmos enriquecer.
Está a moda referir o Estado como um facilitador de alianças e parcerias entre agentes economicos (papel "casamenteiro") propiciando investimento directo estrangeiro estruturante que permita às empresas portuguesas tirar proveito de produtividade elevada, boas infraestruturas fisicas e tecnológicas e custo de capital mais baixo. A importância primordial das condições macro no mercado doméstico faz parte do casamento, mas o mais importante, como os holandeses descobriram há uns quinze anos atrás, é o casamenteiro deixar os parceiros sociais em paz. Isto também se aplica ao projecto mobilizador da internacionalização empresarial. Tudo menos o regresso dos homens sem sono já não das nacionalizações mas das internacionalizações. Porque quem fica com insónias só de pensar nisso é o contribuinte.