Da cultura económica

Jorge Braga de Macedo

Globalização e governação parecem fenómenos independentes mas interagem no dia a dia das pessoas, das empresas e dos países. Recorrendo a exemplos próximos, vou falar aqui do papel que a cultura económica pode desempenhar para que a interacção seja positiva e não negativa. Nas empresas e nos países também interagem mercados e regulações, ao nível nacional, regional e até global. Acontece que, com a globalização dos mercados, só a proximidade da governação pode dar esperança às pessoas.

A cultura económica ajuda a que competitividade e solidariedade tenham resultados para o homem concreto. Se a necessidade de eficiência que a competitividade supõe pode parecer desesperante, a principal implicação de política que se retira desta cultura económica é um apelo à esperança. Esta acaba sempre por ter uma expressão económica, entendida no sentido etimológico de "arrumar a casa", que é afinal, em termos de política, «pôr ordem na cidade». A economia política é pois inseparável das reformas estruturais susceptíveis de combinar, em cada momento, as oportunidades oferecidas pela tecnologia e a promoção do bem comum.

A insinuação etimológica de economia política aponta claramente para o elemento interdisciplinar. Além disso, realça que a análise interdisciplinar, ao buscar o concreto, não deve nunca abandonar o rigor do método. Outra consequência imediata desta perspectiva é que se não pode retirar da história da análise económica qualquer ideia de que o egoísmo ou a cobiça são ingredientes essenciais de uma sociedade responsável e feliz. Pelo contrário, o postulado da selecção natural, e do incentivo próprio para a aprendizagem, insere-se num conjunto de «regras de cidadania» em que a minimização dos conflitos passa pelo respeito dos interesses legítimos dos outros. No limite, as regras do jogo de mercado não podem ser cumpridas sem honestidade e colaboração na sua execução que não desintegre o tecido social. Se isto parece cultura em vez de economia é porque a autonomia cultural se exprime no enfrentar desafios concretos. Enfrentar desafios abstractos que depois não se verificam ajuda a mistificar. Para distinguir os desafios uns dos outros, é preciso cultura económica e bom senso.

Por exemplo, na história da civilização europeia, mormente portuguesa, a sociedade civil sempre tentou limitar o poder do Estado declarar a guerra, quer em ofensivas militares, quer em ofensivas monetárias, como roubar às pessoas o seu poder de compra através da desvalorização cambial. Para quebrar o real, nome da nossa moeda durante cinco séculos, o rei tinha de ouvir as cortes, uma assembleia com representantes de todo o reino, embora não tivesse de seguir a opinião dada.

Muitos séculos volvidos, são as mesmas limitações que explicam a criação da moeda única europeia. Não há dúvida que o regresso destas limitações à tributação escondida demorou um pouco nos principais países europeus - excepto na Alemanha, que nos anos vinte mais sofrera com as consequências da inflação galopante. Contudo, nos anos oitenta, lá foram um a um regressando à estabilidade dos preços. Ironicamente, em países mais pobres, como o nosso, a opinião pública acreditou até meados dos anos noventa que era bom desvalorizar a moeda. Isto apesar de a cultura económica reconhecer que, pelo contrário, quanto mais pequeno e pobre o país, menos ganha com a desvalorização cambial. Isto apesar de uma política consistente com a cultura económica ter sido adoptada desde a adesão ao Sistema Monetário Europeu.

Mas a coerência entre cultura e política económica foi sol de pouca dura. Nas democracias mediáticas, como a nossa se tornou de há uns anos a esta parte, os políticos eleitos não gostam de fazer reformas que lhes custem, ou pareçam custar, votos. Isto depende da maneira como políticos eleitos interagem com a sociedade civil através de meios de comunicação cada vez mais apoiados em tecnologias tão globais como a finança. Nessas condições, a tendência é para o político ser um "vendilhão da prosperidade" (do título de um livro célebre). Vem aqui, fala muito bem, muitos sorrisos, muito diálogo, muitos apertos de mão, mas o certo é que a última coisa que vai fazer é uma reforma impopular, ainda que necessária para a promoção do bem comum. Infelizmente, as semelhanças com políticos vivos não se podem considerar mera coincidência!

A cultura económica ajuda a perceber porque é que isto acontece. Na democracia mediática ninguém sabe, ou quer saber, o que se faz com os impostos, mas cada um quer beneficiar da despesa pública. Assim, quando há fundos públicos para gastar, grupos organizados (empresas, sindicatos, organizações não governamentais) vão gastá-los melhor do que os consumidores em geral, que são contudo os que pagaram os impostos. Este enviezamento tem a ver com o controlo relativo da despesa e da receita pública.

Assim, quem beneficia de uma reforma cala-se, não vem para a rua dizer: "que extraordinário governo temos...". O mesmo se diga de quem recebe um subsídio, uma prebenda ou um emprego na administração pública. Mas quem é prejudicado pela reforma (ou quem se sente excluído do merecido subsídio), queixa-se. Tem direito a indignar-se, como dizia o outro. Conclusão política: "se queres votos, dá prebendas aos grupos mais organizados e fala aos jornais de reformas, mas não as faças, porque os perdes!"

As reformas são necessárias para a promoção do bem comum, mas o subsídio, a prebenda ou o emprego só beneficiam quem os recebe. A cultura económica é essencial para superar o bloqueio das reformas nas democracias mediáticas na justa medida em que distingue reforma de prebenda.

Mas como pode a distinção entre reforma e prebenda ter implicações de política? Vejamos um exemplo: o político reformista em potência vai a Bruxelas e conta esta história a outros políticos reformistas em potência que têm exactamente a mesma experiência negativa com o seu próprio eleitorado. Se calhar um deles vai dizer, olhe que o que eu fiz foi isto e há outra maneira e faça dessa maneira. Então o nosso político reformista em potência percebe que talvez possa concorrer com o melhor padrão existente. Pode esse padrão comunitário não ser suficientemente exigente numa era de concorrência global, mas é bom haver um outro nível de governação no qual a reforma se discute. Esta continuação e o aprofundamento da coordenação a nível europeu pode aplicar-se depois a nível global, permitindo até à Europa contribuir para a reforma da arquitectura do sistema internacional.

O papel da cultura económica é assim o de mostrar como tornear o efeito anti-reformista das democracias mediáticas, contribuindo assim para a promoção do bem comum nacional, regional e até global. Há consensos entre economistas profissionais que podem ajudar cada um dos cidadãos a tomar posições. Assim, apesar dos defeitos das democracias mediáticas, deve-se encorajar a difusão global da governação democrática. Do mesmo modo, fechar as economias umas sobre as outras é certamente uma resposta perversa à globalização.

Neste Verão incerto, as perspectivas de uma ronda mundial de comércio são decisivas para ultrapassar a conjuntura económica recessiva em que se encontram os países mais desenvolvidos. Além dos reflexos directos nas economias emergentes e menos desenvolvidas, a conjuntura actual também diminui a capacidade destas atraírem investimento estrangeiro. Quer a abertura comercial quer a financeira (suportada por uma supervisão bancária adequada) representam respostas válidas da governação nacional, regional ou mesmo global. Mas, talvez ainda mais importante para o bem comum, a abertura comercial e financeira contribui para uma melhor governação das empresas, ou pelo menos está associada a uma menor corrupção aparente. É o que revela investigação em curso no Centro de Desenvolvimento da OCDE.

Vila Viçosa, 7 de Agosto de 2001