ECONOMIA EM TRÊS TEMPOS (=3x3x3 PONTOS)

Jorge Braga de Macedo

 

INTRODUÇÃO
Cultivei a amizade do Professor Teixeira Ribeiro, desde que, recém formado pela Faculdade de Direito de Lisboa, fui visitar o saudoso mestre da Universidade de Coimbra em Julho de 1971. Ao mostrar-me as instalações do Boletim de Ciências Económicas, cujo cinquentenário se está a comemorar, evocou Oliveira Salazar, seu predecessor no gabinete. Evocação académica, que registo por revelar um apego ao "politicamente incorrecto" que manteve durante toda a vida.

As duas anteriores homenagens que prestei a Teixeira Ribeiro, dediquei-as - em inglês - ao estudioso da moeda e das finanças públicas. Escrevo a terceira homenagem na nossa língua materna, em tributo à clareza meridiana de escritos que tornaram a economia relevante para tantos estudantes portugueses.

A economia, para uns ciência do desespero - ou do cinismo - para outros mero esteio da gestão ou da avaliação de organizações, foi considerada "rainha das ciências sociais" por um dos seus primeiros prémios Nobel. Atribuído que foi esse prémio a uns cinquenta economistas, o uso de modelos e métodos quantitativos em que a economia foi pioneira generalizou-se nas ciências sociais e humanas.

Além disso, desapareceram as barreiras que a guerra fria colocara ao desenvolvimento da democracia e do mercado no terceiro mundo. Mas a globalização dos últimos dez anos gerou frustrações ruidosas, cuja manifestação só abrandou perante os ataques de 11 de Setembro de 2001 contra os Estados Unidos, na medida em que se perfilou a hipótese de novas barreiras ao desenvolvimento da democracia e do mercado nos países pobres sujeitos ao fanatismo islâmico e ao terror de Estado.

Salientando a rapidez da pedagogia, proponho a economia em três tempos. Parto do sentido etimológico de "arrumar a casa" e, aumentando a escala do mercado, chego à "cidade global" e à luta contra a pobreza que aí se observa. Nem por isso presumo que aquela economia seja aplicável do mesmo modo a todas as civilizações. Como o respeito das liberdades individuais é inseparável de uma escolha pública legítima, reina a desordem nos sistemas que oprimem essas liberdades.

O texto está pois dividido em três partes, além desta introdução, da conclusão (interdisciplinar) e da bibliografia (referente a cada ponto). O primeiro tempo trata de incerteza, impostos e crescimento. No segundo, varia-se o âmbito de análise do nacional ao europeu. Incorporando, graças a essa variação, a luta contra a pobreza, motiva-se no terceiro tempo a criação de riqueza - da qual resulta um efeito positivo da globalização na governação. Cada um dos três tempos ganha em dividir-se em três partes distintas, nas quais são de salientar outros tantos tópicos. Chega-se assim aos 3x3x3 pontos em que está estruturado este escrito.

1º TEMPO: ARRUMAR A CASA

Arrumar a casa é um desafio permanente, até porque nenhum sistema económico consegue lidar perfeitamente com a incerteza que as pessoas experimentam no dia a dia (1.1).

As pessoas procuram bens públicos que o mercado não consegue prover. Esses bens devem ser financiados por impostos colectivamente acordados entre cidadãos, no respeito dos seus direitos, liberdades e garantias (1.2).

Apesar das imperfeições do mercado e da escolha pública na agregação dos valores individuais, as alternativas costumam ser piores para as liberdades política e financeira das pessoas e para o crescimento sustentado das economias (1.3).

    1. INCERTEZA (OU A CASA ÀS ESCURAS)

Havendo mercados completos no presente e no futuro, a incerteza incorpora-se facilmente na demonstração de que os preços aí determinados representam a melhor medida da escassez relativa dos bens, serviços e activos - tendo em conta a tecnologia e as preferências. Aceitar a hipótese da informação perfeita equivale pois a negar os efeitos da incerteza no comportamento dos agentes económicos. Introduz-se aqui informação imperfeita acerca do rendimento esperado de um projecto de investimento e tornam-se relevantes as regras de acordo com as quais se decide se esse projecto é bom ou mau. Comparam-se sistemas de decisão, por definição imperfeitos (1.1.1).

Usam-se os resultados comparativos para demonstrar que quer o sistema descentralizado de mercado quer o planeamento central têm enviezamentos relativamente ao sistema de informação perfeita (1.1.2).

Explica-se este resultado pelo facto de a informação ter características de bem público que o preço de mercado não consegue reflectir perfeitamente (1.1.3).

1.1.1. Bons e maus projectos

Considere-se o processo de decisão sobre se é bom ou mau um projecto cujo rendimento incerto há que comparar com o de um activo com rendimento certo. A comparação depende do preço da informação sobre o rendimento do projecto não ser zero (se fosse, o rendimento do projecto seria certo). Nenhuma combinação de métodos de avaliação de projectos de investimento consegue eliminar todas as imperfeições da informação. O método que envolve muitas decisões independentes, respeitando assim a liberdade de escolha individual, está enviesado no sentido de aceitar maus projectos. O método hierárquico (segundo qual os projectos vão sendo seleccionados por vários níveis, susceptíveis de ir reflectindo juízos colectivos) tende, pelo contrário, a rejeitar bons projectos. Certas instituições, como o mercado competitivo, envolvem muitas decisões independentes ao passo que outras, como o planeamento central, obedecem a uma hierarquia rígida.

Costuma dizer-se que o mercado competitivo sintetiza a informação disponível sobre a raridade de cada bem, serviço ou activo no respectivo preço. Contudo essa síntese só o é na ausência de incerteza. Com incerteza, o preço do mercado não sintetiza a raridade de cada bem, serviço ou activo, limita-se a dar um sinal dessa mesma raridade. Por isso, os agentes económicos concretos combinam ambos os métodos, com predomínio para um ou outro.

1.1.2. Mercado, plano e custos de transacção

A empresa têm a sua própria organização interna, porventura tão hierárquica como o planeamento central, mas funciona num ambiente de mercado concorrencial. Daí resulta uma capacidade de combinar a concorrência com a centralização em função dos custos e benefícios respectivos, que se alteram constantemente em função da tecnologia e das preferências dos agentes. Nos custos há que incluir a incerteza e, mais geralmente, as transacções necessárias para atingir os objectivos.

Esses custos de transacção dependem das instituições existentes que também ajudam a determinar. Dentro das instituições relevantes estão certamente as que regulam a actividade económica, assente nas liberdades individuais que se concretizam na responsabilização democrática e numa moeda estável e convertível. Consoante os custos de transacção, a disciplina é executada à escala local, nacional, regional ou da "cidade global".

1.1.3. Informação tem elemento de bem público

O elemento crucial da incerteza é derivado da natureza pública ou privada dos bens produzidos. O mercado não estabelece um preço justo para o bem público, porque o seu consumo não é exclusivo - devendo por isso ser financiado pelo imposto. Ora, embora não necessariamente exclusivo, o uso da informação é indivisível e esta tem assim um elemento de bem público. A eficiência exige pois a combinação entre provisão pública e privada de informação.

1. 2. IMPOSTOS (OU A CASA MAIS SEGURA)

A incerteza coloca no centro da economia a escolha pública, segundo a qual o cidadão é contribuinte ao longo do ciclo vital: goza de bens públicos pagos pelos seus impostos passados, presentes ou futuros. Como os impostos não são voluntários, prevenir a evasão fiscal exige responsabilização mútua, que é uma forma de "pressão dos pares" entre os cidadãos (1.2.1) .

Esta responsabilização mútua incorpora o reconhecimento crescente das vantagens da liberdade política, entendida como equivalente ao voto majoritário e ao estado de direito (1.2.2).

Por outro lado, a existência de mercados financeiros internacionais obriga os governantes a encarar as consequências futuras das suas políticas, sem o que perderão credibilidade (1.2.3).

1.2.1. Impostos e «pressão dos pares»

Os impostos servem para prover bens públicos, cujas características impedem a afectação pelo mercado. No caso dos bens privados, o consumo de quem não paga é fácil de excluir, pelo contrário a partilha é essencial nos bens públicos. Essa partilha permite a utilização do bem público sem contribuir para o respectivo financiamento, o chamado problema da "boleia". Este problema é tanto maior quanto mais comuns são os recursos e quanto menor a responsabilização do contribuinte. O incentivo para contribuir ao provimento de bens públicos diminui quando aumenta o número de contribuintes, diminuindo o contributo individual.

Como os impostos não são voluntários, a integração da pessoa num grupo social pequeno onde portanto os cidadãos são «pares» uns dos outros minimiza, através da responsabilização mútua, a evasão fiscal. A «pressão dos pares» é, deste modo, uma forma de integração social e cultural, uma forma de cidadania que legitima o tributo para financiar os serviços públicos. Só que, ao alargar o número de pares, perde-se integração social e cultural, ou torna-se menos concreta. Além do número, a combinação também se deve adaptar à cultura dos agentes, empresas, ou, no caso da nação-Estado, à política pública respectiva.

1.2.2. Voto majoritário e cidadania

Como os impostos são recursos comuns, podendo ser afectados à provisão de quaisquer bens, o seu nível deve assentar em instituições fortes, tais como o voto majoritário dos cidadãos e mecanismos de execução eficientes. Isto apesar de nenhuma regra de escolha pública conseguir agregar perfeitamente quaisquer preferencias individuais, e de nenhum mecanismo de execução ser perfeitamente eficiente.

Surge de novo aqui a combinação entre a incerteza, a evasão fiscal e a boleia relativa aos bens públicos em que não é possível excluir o consumo dos que não pagam, nem eliminar o desperdício da provisão gratuita universal.

A concorrência do mercado insere-se assim num conjunto de «regras de cidadania» em que a minimização dos conflitos passa pelo respeito dos interesses legítimos dos outros. No limite, as regras do jogo de mercado não podem ser cumpridas sem honestidade e colaboração na sua execução que não desintegre o tecido social. Nem se pode retirar da história da análise económica qualquer ideia de que o egoísmo ou a cobiça são ingredientes essenciais de uma sociedade nacional responsável. Nas democracias avançadas a solidariedade nacional ultrapassou largamente a discriminação com base no rendimento disponível ao longo do ciclo vital.

Na última década, andaram de par democracia e globalização. A liberalização das trocas internacionais de bens, serviços e activos financeiros e a maior exigência de transparência associada ao poder crescente da sociedade civil contribuíram para tal crescimento simultâneo. O segundo factor também explica a observada frustração acerca dos efeitos da globalização na pobreza do mundo.

1.2.3. Reputação e bom governo

A credibilidade das políticas económicas é inseparável das expectativas acerca do futuro. Mas a credibilidade também depende do passado, na medida em que envolve a aquisição de uma reputação. A boa reputação beneficia toda a sociedade, e também naturalmente quem conduz a política pública, mas, por isso mesmo, demora tempo a adquirir e pode rapidamente perder-se.

A escolha pública oferece pois uma base forte para definir como espaço privilegiado para o bom governo aquele que melhor combine os seus três valores: proximidade do cidadão, legitimidade nacional e responsabilização democrática. Estes três valores reflectem o arrumar a casa em termos de política, ou seja «pôr ordem na cidade» (usando outra vez a etimologia). Admitindo que a legitimidade primeira é a nacional, estes valores servem para escorar formas de governo local e supranacional, como se pode verificar pelo seu acolhimento nos primeiros artigos do Tratado da União Europeia.

A ordem em questão deve respeitar a liberdade de escolha das pessoas e não desperdiçar os recursos disponíveis. Isto implica uma procura de eficiência no consumo ao longo do ciclo vital e uma produção competitiva no espaço nacional. Vê-se logo que a competitividade tenderá a ser global logo que a tecnologia o permita, mesmo que permaneçam nacionais os mecanismos coercivos do Estado. Como depende destes mecanismos o respeito dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, nomeadamente o de propriedade, «arrumar a casa» implica regras de escolha pública que favorecem o crescimento sustentado.

1. 3. CRESCIMENTO (OU A CASA MAIS ABERTA)

Dada a tecnologia e as instituições disponíveis, qualquer economia que se veja duradouramente isolada dos mercados internacionais há-de crescer mais devagar do que economias nacionais onde se protegem os direitos de propriedade e de livre iniciativa (em contraste com os interesses instalados), onde os impostos são moderados e onde floresce o comércio internacional em bens, serviços e activos financeiros.

Esta ideia é por vezes considerada como contrária ao Estado-solidário, mas a sua crescente aceitação nas economias mais avançadas mostra que assente solidamente no voto majoritário dos cidadãos.

Demonstra-se a suficiência destas condições, devendo introduzir-se qualificações quanto à necessidade (1.3.1). Resultam daí limites quanto à redistribuição que prejudique as gerações futuras (1.3.2), sobretudo quando se reconhece a existência de crises financeiras internacionais (1.3.3).

1.3.1. Abertura internacional e direitos de propriedade

Comparando as taxas de crescimento num horizonte de décadas, conclui-se a favor da convergência das economias abertas em que se respeitam os direitos de propriedade e a ética empresarial (valores sociais e tribunais que funcionam). Nestes resultados é indiscutível a suficiência dos dois critérios (abertura e bom governo): que as economias que os cumprem crescem mais depressa quanto menor o seu PIB por cabeça.

Já a necessidade é controversa: o crescimento da economia chinesa foi excepcional, embora se saiba que a aposta na liberalização comercial (que culminou com a recente adesão à OMC, antes da Rússia!) foi de par com restrições às liberdades política e financeira.

Por outro lado, um país pode não ter capacidade técnica para liberalizar o seu comércio externo. Mais, a plena liberalização financeira deve ser suportada por uma supervisão bancária adequada, sem a qual se não recomenda às economias emergentes ou menos desenvolvidas.

De qualquer modo, de um ponto de vista estatístico, a ligação positiva entre PIB por cabeça e bom governo é mais forte do que a ligação positiva entre crescimento e abertura.

1.3.2. Redistribuição presente e liberdades futuras

Quando ameaçam o direito de propriedade com impostos presentes ou futuros elevados, ou quando protegem as empresas nacionais da concorrência internacional, os governos podem ganhar eleições mas violam o contrato social em desfavor das gerações futuras. Essa violação dos princípios de bom governo reduz o potencial de crescimento económico, a competitividade das empresas e a criação de emprego.

Esta tensão entre redistribuição presente e liberdades futuras não deve confundir-se com os sacrifícios do consumo presente a que o planeamento central obrigou as populações em nome de investimentos não rentáveis. A diferença primária reside na existência de um mercado internacional no qual se determinam preços relativos (e taxas de juro, o preço relativo do consumo amanhã) que dão um melhor sinal da raridade do que os preços relativos domésticos.

1.3.3. Crises e hierarquia financeira

A globalização resulta das decisões descentralizadas de empresas em todo o mundo, mas tem uma hierarquia que combina as lições, mais ou menos assimiladas, da história e da geografia em padrões tidos por exemplares. A novidade relativamente a uma análise puramente nacional é que esta hierarquia adquire maior relevância durante as crises financeiras internacionais, parecendo perdê-la em tempos de grande apetite pelo risco por parte de investidores internacionais.

Assim, por um lado, a hierarquia segue a reputação financeira e a eficácia da luta contra a corrupção, mas por outro, as perspectivas positivas ou negativas para aquela reputação e esta luta ajudam a determinar o padrão de contágio nas crises. Assim, graças a elevadas taxas de crescimento do PIB registadas durante décadas sucessivas, os "tigres asiáticos" ultrapassaram muitos países fundadores da OCDE, entre os quais Portugal, em rendimento médio.

Talvez mais mediático, Portugal e a Grécia tem disputado o último lugar na UE, como "saltos de rã" sucessivos, primeiro Portugal a passar a Grécia ha´dez anos agora a Grécia a passar Portugal em PIB por cabeça.

A divergência das economias mal governadas relativamente aos melhores padrões agrava-se quando há turbulência nos mercados. Porque em períodos de calma, qualquer nação, região, cidade ou empresa consegue obter crédito, por vezes até em excesso. Surge uma crise financeira, o melhores padrões reafirmam-se e sofrem as populações. Um baixo risco de crédito é uma garantia para as gerações vindouras porque uma política orçamental insustentável ameaça as liberdades futuras. Esse juízo de sustentabilidade, feito no presente, traduz-se em maior ou menor credibilidade nacional, e numa maior ou menor participação das empresas nacionais na economia global.

2º TEMPO: AUMENTAR A ESCALA DO MERCADO

Arrumar a casa só captura a essência do raciocínio económico mudando a escala de uma unidade individual para a do mercado local, nacional ou global. Também se deve passar do presente para o futuro, incorporando o ciclo vital das pessoas e a perspectiva das gerações futuras (2.1).

O argumento da escala crescente aplica-se bem à evolução bicentenária da interacção entre as liberdades dos portugueses e as suas pertenças, evolução acompanhada por uma constituição fiscal desfavorável à convergência do nível de vida com os melhores padrões europeus. Terminada a guerra civil em 1834, essa constituição fiscal não escrita atravessou vários regimes políticos e económicos, fazendo perdurar o conflito artificial entre as liberdades política e financeira e as pertenças europeia e lusófona (2.2).

A despeito da garantia que o euro representa para os portugueses, as suas liberdades futuras continuam ameaçadas por políticas insustentáveis. O sucesso que a introdução física do euro representa radica numa pressão dos vários Estados membros para levar a cabo reformas consideradas impopulares pelos respectivos eleitorados. Mesmo assim, a "casa portuguesa" é apenas um exemplo de quão difícil tem sido sustentar reformas estruturais naquilo a que - numa óptica de cidade global - se chama "bairro europeu" (2.3).

2. 1. GLOBALIZAÇÃO PARA AS PESSOAS

A globalização para as pessoas não deve ser micro nem macroeconomia. As vendas das grandes empresas multinacionais ultrapassam em muito o PIB da maior parte dos países, o que não impede que se refira ao estudo destas como micro e não macro. Como as pessoas distinguem muito melhor presente e futuro, do que micro e macro, pode falar-se da "gestão do sustentável" a propósito da economia, tal como se fala de "arte do possível" a propósito da política.

Mesmo que a liberdade de imprensa tenha implicações positivas na responsabilização democrática (2.1.1), a tensão artificial da micro e da macro, ou da economia e da ecologia, faz parte do enviezamento que a imprensa introduz, afastando as pessoas (2.1.2). Desta tensão resulta a percepção de que a globalização serve apenas os "ricos" (2.1.3).

2.1.1. Virtude e enviezamento mediáticos

Alimentar o preconceito da escala sobre-humana da macro (por oposição à etimologia) é, todavia, politicamente oportuno, ou "correcto". Desaparecidas as barreiras da guerra fria à democracia e ao mercado, restam enviesamentos mediáticos contra os políticos e empresários aos quais escapam por vezes os representantes da sociedade civil, incluindo os académicos.

Os jornalistas económicos conseguem ser inimigos dos economistas profissionais, considerados ininteligíveis e demasiado "macro", embora este preconceito raramente resolva problemas mais sentidos pelas pessoas, consumidores, fornecedores, trabalhadores, accionistas, gestores, etc.

Dada a importância da informação, e a possibilidade de chegar a toda a parte graças às tecnologias de comunicação e informação, nem sempre a imprensa se presta à devida responsabilização, quando esta faz parte dos valores básicas da democracia e do mercado. Pode pedir-se uma relação estatística positiva entre a liberdade de imprensa e o bom governo, na medida em que aquela dificulta a coligação dos interesses instalados e a sua capacidade em capturar a regulação estatal.

2.1.2. Afastamento das pessoas

A imprensa, essencial para a divulgação dos comportamentos de massas que justificam falar de agregados económicos, nacionais, continentais ou mesmo mundiais, também tem o efeito perverso de afastar a globalização das pessoas, dando-lhes uma noção de impotência perante poderes ocultos e decerto conspirativos.

Paradoxalmente, pode contribuir para este afastamento do cidadão o facto das grandes orientações da política económica serem objecto de supervisão, ou pelo menos de coordenação multilateral entre os responsáveis pelas grandes potências democráticas. Esta coordenação tem a mesma natureza à escala nacional do que a responsabilização mútua em matéria fiscal (1.2).

2.1.3. Percepções da globalização

Os críticos da globalização costumam dar a entender que se trata antes de doutrinas ao serviço de interesses. Interesses que na imprensa costumam ser estrangeiros e esconder-se por trás de instituições ditas antidemocráticas, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a OMC, a OCDE, a UE, ou o G-7/G-8. Interesses que na realidade são nacionais e estão instalados à sombra de políticas de protecção comercial ou financeira, cuja mudança tudo fazem por evitar ou pelo menos adiar.

Só que esses interesses escondem-se atrás de percepções não fundadas na realidade, que se podem até transformar em mitos. Por exemplo, sustentar que a globalização serve apenas os "ricos" sem esclarecer se se trata do rendimento das pessoas ou dos países, e em que termos se define o limiar da pobreza

O fracasso da "ronda do milénio" promovida pela OMC em Seattle há dois anos atrás mostrou que se deve melhorar a pedagogia da "ordem na cidade (global)". Acontece que essa pedagogia envolve uma sociedade civil internacional emergente que questiona a hierarquia financeira existente. Depois do 11 de Setembro de 2001, contudo, assiste-se a uma reavaliação de alianças tradicionais, que faz lembrar a guerra fria e que virá a ter consequências na hierarquia financeira internacional (3.2).

2. 2. VORACIDADE NA CASA PORTUGUESA

Entre nós, a problemática do desenvolvimento tem-se prestado a um debate interdisciplinar, aberto à análise social. Apresenta-se aqui uma casa portuguesa onde, independentemente dos sistemas políticos mas não do sistema fiscal, tem imperado a voracidade dos interesses instalados em detrimento do trabalho e do capital informal, ou seja do bem comum.

Dada uma herança esquecida de estabilidade e convertibilidade monetária (2.2.1), podem-se definir ciclos político-económicos virtuosos e viciosos desde 1834 (2.2.2), a despeito de uma constituição fiscal que privilegia os interesses instalados (2.2.3).

2.2.1. Herança esquecida

Faz parte da história da civilização europeia, e da nossa própria história monetária, a tendência da sociedade civil limitar o poder do Estado declarar a guerra, quer em ofensivas militares, quer em ofensivas monetárias, como roubar às pessoas o seu poder de compra através da desvalorização cambial. Por exemplo, antes de criar impostos ou de "quebrar" a moeda, o rei de Portugal tinha de ouvir as cortes. Embora não tivesse de seguir a opinião dada, a convocação chegou para preservar o valor do real em tempo de paz, e para acompanhar a desvalorização cambial com medidas fiscais em tempo de guerra.

Muitos séculos volvidos, são as mesmas limitações que explicam a criação do euro. Não há dúvida que o regresso destas limitações à tributação escondida demorou um pouco nos principais países europeus - excepto na Alemanha, que nos anos vinte mais sofrera com as consequências da inflação galopante. Contudo, nos anos oitenta, lá foram um a um regressando à estabilidade dos preços. Ironicamente, em países mais pobres da zona euro, como Portugal, a opinião pública acreditou até meados dos anos noventa que era bom desvalorizar a moeda. Isto apesar de a economia reconhecer que, pelo contrário, quanto mais pequeno e pobre o país, menos ganha com a desvalorização cambial.

2.2.2. Ciclos virtuosos e viciosos

Em Portugal, existe uma tradição que considera a estabilidade financeira um privilégio dos banqueiros. A tradição escorou-se em crises recorrentes desde que a declaração da inconvertibilidade do real em ouro, em 1797, retirou a liberdade financeira aos portugueses e as invasões francesas, sob pretexto de introduzir a liberdade política ameaçaram as pertenças dos cidadãos. Surgiram assim mitos que se afirmaram com nova declaração de inconvertibilidade do real em 1891 e se fortaleceram com as revoluções redistributivas do século XX, chegando aos nossos dias.

Substituindo o ênfase no regime político (monarquia, república, democracia, ditadura) por uma classificação baseada na combinação da liberdade política e financeira leva a uma periodização bem diferente da habitual. Assim existem ciclos virtuosos na segunda metade do século XIX e nos anos 1960, enquanto se revela vicioso em termos da liberdade financeira o ciclo entre as nacionalizações de 1975 e a revisão constitucional de 1989. De acordo com esse critério, podem definir-se ciclos virtuosos e viciosos e estabelecer-se a diferença em matéria de estabilidade política e de convergência relativamente à média europeia (usando os actuais membros da UE com pesos baseados nos PIB de 1970 em dólares) a partir da convenção de Évoramonte em 1834.

O panorama do crescimento nos 160 anos até 1995 é de convergência a uma taxa de cerca de 1% ao ano em ciclos virtuosos e de divergência a uma taxa um pouco inferior durante os ciclos viciosos. Chega-se em média a uma ligeirissima convergência, porque os ciclos viciosos são tão duradouros quanto os virtuosos. A inflação é sempre superior à média europeia, mas atinge valores muito mais altos nos ciclos viciosos. Quanto à duração média dos governos, cai de 18 para 11 meses, o que é indiscutivelmente curto.

2.2.3. Constituição fiscal

Além de sugerir a irrelevância do regime político encarado isoladamente, a história monetária portuguesa também mostra que não surtiram efeito as ambições redistributivas das revoluções vitoriosas de 1910, 1917, 1926 e 1974. Manteve-se no essencial uma "constituição fiscal" corporativa e opaca que tolera a evasão e favorece a apropriação das despesas públicas por corpos intermédios públicos e privados. São assim privilegiadas grandes colecções de interesses capazes de manipular a receita e despesa pública em detrimento do trabalho e do capital privado informal (isto é desinserido daquelas colecções). As instituições de absorção e de concessão de recursos comuns têm-se mantido muito mais estáveis do que os governos, revelando os limites da pressão externa perante a voracidade descoordenada de grupos sociais interessados em partilhar entre si a base fiscal. Foi notória a resistência à introdução do imposto único sobre o rendimento em 1989 e à reforma da administração fiscal desde então, tendo a primeira sido vencida mas a segunda não.

Por causa da constituição fiscal corporativa e opaca, não chega estabilizar a economia nacional num ambiente em que cada um dos principais partidos políticos alternadamente se reclama da estabilidade e da segurança, considerando o outro portador de instabilidade e insegurança. Poderia dizer-se que todos querem a "sua" estabilidade - que associam a flexibilidade - e rejeitam a estabilidade dos outros que julgam antes rigidez. Como, dentro da estabilidade, o eleitorado parece querer mudança, os lideres partidários prometem reformas, sem querer ou poder depois executá-las (2.3.1).

Este paradoxo do reformismo é típico das democracias avançadas, especialmente europeias: como as políticas propostas, desgarradas do ciclo vital, não são credíveis, as estruturas que prevalecem nos mercados de trabalho e capitais mantêm-se rígidas demais.

2. 3. REFORMAS NO "BAIRRO EUROPEU"

A construção europeia trouxe aos membros da união (sobretudo os nove países que se encontram em todas as suas instâncias, da UEO a Schengen passando pelo euro, e que incluem além dos seis fundadores, Grécia, Espanha e Portugal) um nível de governação no qual se podem discutir as reformas estruturais necessárias para aumentar a competitividade.

Tais reformas são contudo adiadas nas democracias mediáticas (2.3.1).

Isto apesar de os melhores padrões europeus poderem não ser suficientemente exigentes numa era de concorrência global (2.3.2), mesmo depois do festejo internacional que acompanhou a introdução do euro nos bolsos de muitos europeus (2.3.3).

2.3.1. Democracias mediáticas

A consagração da economia nacional no mercado global só ocorre quando as empresas aí sediadas se começam a reorganizar para o efeito, respondendo ao que as empresas sediadas noutros países tem levado a cabo nos últimos anos, muitas vezes através de fusões internacionais. Essa consagração exige reformas, que os políticos eleitos não gostam de fazer porque lhes custam, ou parecem custar, votos.

Nas democracias mediáticas, isto depende da maneira como políticos eleitos interagem com a sociedade civil através de meios de comunicação cada vez mais apoiados em tecnologias tão globais como a finança. Nessas condições, a tendência é para o político não fazer reformas impopulares, posto que necessárias para aumentar a competitividade.

A escolha pública ajuda a perceber que isto acontece quando ninguém quer saber o que se faz com os impostos, embora todos e cada um queiram beneficiar da despesa pública. É esta diferença entre recursos comuns (não exclusivos) e bens públicos parcialmente exclusivos que está no âmago do "arrumar a casa" (1.2.1).

Assim, quando há fundos públicos para gastar, grupos organizados (empresas, sindicatos, organizações não governamentais) vão gastá-los melhor do que os consumidores em geral, que são contudo os que pagaram os impostos. Este enviezamento tem a ver com o controlo relativo da despesa e da receita pública. Assim, quem beneficia de uma reforma cala-se, não vem para a rua defender essa mesma reforma. O mesmo se diga de quem recebe um subsídio, uma prebenda ou um emprego na administração pública. Mas quem é prejudicado pela reforma (ou quem se sente excluído do merecido subsídio), queixa-se. Tem direito a indignar-se, como dizia o outro.

As reformas são necessárias para a promoção do bem comum, mas o subsídio, a prebenda ou o emprego só beneficiam quem os recebe. Conclusão política: " dá mais prebendas aos grupos mais organizados e depois fala aos jornais de reformas, mas não as faças, porque perdes os votos que queres!" Para superar o bloqueio das reformas nas democracias mediáticas é essencial distinguir reforma de prebenda.

2.3.2. Pressão dos pares mais uma vez

Mas como pode a distinção entre reforma e prebenda ter implicações de política? Vejamos um exemplo retirado da economia da regulação: o político reformista em potência conta esta história a outros políticos reformistas em potência, que têm exactamente a mesma experiência negativa com o seu próprio eleitorado (sendo assim seus "pares"). Se calhar um deles vai dizer, olhe que o que eu fiz foi isto e há outra maneira e faça dessa maneira. Então o nosso político reformista em potência percebe que talvez possa concorrer com o melhor padrão existente.

Podem os melhores padrões europeus não ser suficientemente exigentes numa era de concorrência global, mas é bom haver um outro nível de governação no qual se podem discutir as reformas estruturais necessárias para aumentar a competitividade (2.1.2).

Como construir esse nível de governação, sem aumentar os custos de transacção? Uma resposta é a da integração flexível, dependente da natureza dos bens públicos a prover. Em certos casos o bem traz benefícios exclusivos para os membros, sendo de prever que o problema da "boleia" não se ponha então com a mesma acuidade com que se põe relativamente aos recursos comuns. Esta diferença explica aliás tanto o sucesso de esquemas que repousam num código de conduta mutuamente aceite, como foi o caso do Sistema Monetário Europeu e do acordo de Schengen, quanto o falhanço da harmonização fiscal.

2.3.3. Integração flexível

Os esquemas de integração flexível tornaram-se ainda mais importantes com a iminência do alargamento da EU, sendo de aplaudir a maior facilidade que lhes é conferida no Tratado de Nice. Quando os bens públicos a prover têm a ver com redes que trazem benefícios exclusivos para os membros, como o euro, os esquemas de integração flexível têm um efeito "bola de neve", sendo porventura mais capazes de relançar a construção europeia do que o debate constitucional que se inicia (3.2 ).

O exemplo em mostra que Até a moeda única europeia pode ter efeitos perniciosos se não houver bom governo nacional e europeu: é o "esticão do euro" (2.2.1).

A cidadania nacional envolve, além do direito à justiça, uma quota de poder politico e de recursos económicos. Na experiência da cidadania europeia esses elementos estão presentes, posto que fortemente atenuados.

3º TEMPO: CRIAR RIQUEZA LUTANDO CONTRA A POBREZA

Como ultrapassar a tensão entre pobreza e cidadania? Mesmo quando o cidadão é contribuinte ao longo do ciclo vital, nem sempre se consegue reduzir a desigualdade na distribuição do rendimento até ao nível colectivamente desejado. São estreitos os limites da redistribuição entre nações-Estado, sobretudo sem uma condicionalidade mutuamente aceite. Além disso, onde a pobreza individual se revela em termos mais dramáticos, é agravada por Estados falhados nos quais os grupos dirigentes roubam a população.

Quando falha o mercado e o Estado, não se consegue arrumar a casa, nem há ordem na cidade global. Quanto aos esforços internacionais para aliviar a pobreza nem sempre conseguem apelar para a cidadania de quem paga e de quem recebe (3.1).

A reforma do sistema internacional, tornada urgente pela recessão que o mundo atravessa, poderá inspirar-se em exemplos europeus de "pressão dos pares", sobretudo aqueles que repousam num código de conduta mutuamente aceite (3.2).

Admitindo um efeito causal positivo da globalização sobre a governação, importa promover coligações reformistas que dêem mais lugar à sociedade civil do que é comum nas democracias mediáticas, sendo certo que não será possível combinar a competitividade necessária com a solidariedade desejada sem as empresas e suas associações (3.3).

3. 1 REDISTRIBUIÇÃO E CONDICIONALIDADE

Uma implicação da cidadania é ultrapassar certo limiar de pobreza, restando encontrar mecanismos de gestão e avaliação para concretizar essa implicação concreta da cidadania (3.1.1).

Dentro desses mecanismos não basta incluir a ajuda ao desenvolvimento por parte dos países mais ricos, havendo também que averiguar a capacidade de absorpção dos destinatários, o que inclui benefícios universais nos países mais pobres ou então a morada de pessoas concretas aí residentes (3.1.2).

As dificuldades de cada uma das alternativas são ainda maiores quando as condições da ajuda são impostas aos países receptores, o que tem levado a falar de uma condicionalidade mutuamente assumida (3.1.3).

3.1.1. Pobreza e cidadania

Reduzir a desigualdade na distribuição do rendimento até ao nível colectivamente desejado exige informação sobre as preferências presentes e futuras que não está disponível ou que é manipulável em proveito próprio pelos representantes das gerações presentes, dando origem a políticas insustentáveis e que ameaçam o património natural ou cultural.

Os valores da liberdade de escolha individual e do consenso sobre as regras de escolha colectiva que estão na base do critério de "arrumar a casa" não se podem postular em todo o mundo. Por outras palavras, mesmo que a tecnologia permita um mercado global para certos bens e serviços, e que as «regras de cidadania» sejam comuns a um conjunto de países, a existência de uma sociedade global das nações é incompatível com a pobreza absoluta de largas camadas da população do globo. Aí a pobreza individual revela-se por vezes em termos dramáticos e é agravada por Estados falhados nos quais não existe cidadania, porque esta cidadania não resiste quando os grupos dirigentes roubam a população, dando origem à cleptocracia.

3.1.2. Ajuda e morada

Nesse sentido, os esforços internacionais para aliviar a pobreza terão custos mais elevados se não apelarem para a cidadania de quem paga e de quem recebe, o que implica desde logo um conhecimento da morada dos destinatários. Os programas de redução da pobreza devem ter em conta o custo para o contribuinte nacional ou estrangeiro. Só assim poderão evitar o desperdício que tantas vezes mina a sustentabilidade do próprio esforço de ajuda. Isso tem efeitos no padrão de desenvolvimento do país que recebe, porque dificulta as reformas duráveis de que os cidadãos precisam para enriquecer.

Por isso se deve ter uma ideia concreta de democracia baseada na moralidade do sentimento de cidadania do pequeno grupo que cresce para a nação-Estado, mas que consegue manter a coesão do tecido social ao nível das famílias. Ora a coesão do tecido social, muitas vezes esquecida pelas sociedades ricas, continua a ser um ingrediente essencial do desenvolvimento sustentado.

3.1.3. Condicionalidade mutuamente assumida

A resistência a uma análise do custo e do beneficio de cada uma das operações de ajuda, por parte dos que dão e dos que recebem é um bom exemplo da força dos interesses instalados. Esforços recentes reinterpretam a condicionalidade da ajuda em termos que a tornam mutuamente assumida. Com condicionalidade imposta, as políticas não têm credibilidade mas sem condicionalidade, a ajuda esgota-se.

Quando não pode haver avaliação da efectividade da ajuda, cai-se em situações perversas. Nem são só de África os exemplos: em Itália chegou a dizer-se que a ajuda do Norte rico ao Sul pobre tributa as classes médias do Norte para subsidiar os ricos do Sul, ignorando os pobres do Norte e do Sul. A reforma da condicionalidade já começou, graças aos esforços conjugados de organizações internacionais, nomeadamente o Banco Mundial.

3. 2. REFORMA DO SISTEMA INTERNACIONAL

Sobretudo depois dos atentados do 11 de Setembro de 2001, para reformar a ordem económica global há que partir da responsabilização nacional das organizações internacionais (3.2.1), aumentando a colaboração entre elas (3.2.2).

Para tal os procedimentos seguidos na União Europeia ganhariam em ser aplicados noutros continentes, aliando um efeito bola de neve internacional ao interno (3.2.3).

3.2.1. Responsabilização nacional

Por seu lado, as organizações internacionais quer universais (Nações Unidas, FMI; OMC) quer selectivas (OCDE, Banco de Pagamentos Internacionais) tentam aferir a provisão de bens públicos globais, e aplicar na sua própria governação os mesmos princípios de bom governo que recomendam aos Estados membros. A arquitectura financeira internacional incluí ainda organizações regionais, como os bancos de desenvolvimento africano, asiático, europeu e interamericano.

3.2. 2. Pouca colaboração

Quanto ao sistema internacional ainda é largamente formado por nações-Estado, embora agrupamentos regionais como a EU, representantes da sociedade civil e dos meios de negócios internacionais se tenham tornado mais relevantes nos últimos anos.

Apesar desses esforços recentes, é ainda muito ténue a colaboração entre organizações internacionais. Para além da sua deficiente responsabilização perante os Estados membros, a incoerência entre as posições das diversas entidades governamentais destes mesmos Estados membros dificulta a respectiva reforma. Desde logo, os países europeus do G-7/G-8 (Alemanha, França, Itália e Reino-Unido) raramente conseguem apresentar soluções comuns, o que diminui muito a sua credibilidade quer junto dos outros membros do G-7/G-8 (Canadá, EUA, Japão, Rússia) quer junto dos outros membros da UE e da zona do euro.

3.2. 3. Bola de neve

Esta continuação e o aprofundamento da coordenação a nível europeu pode aplicar-se depois a nível global, permitindo até à Europa contribuir para a reforma da arquitectura do sistema internacional. Isto embora o voto democrático se não aplique à escala mundial, já que presume a cidadania - atributo dos «pares» que partilham uma cultura.

Apesar dessas dificuldades, os mecanismos europeus de pressão dos pares ganhariam em ser mais aplicados à escala global.

Existem tentativas na Ásia e América Latina, e no próprio agrupamento informal do G-20, que inclui as principais economias emergentes (nomeadamente o Brasil). Não obstante, a aplicação de mecanismos europeus à escala internacional enfrenta muitos obstáculos entre os próprios países em desenvolvimento.

3. 3. GLOBALIZAÇÃO E GOVERNAÇÃO

Com a globalização, a boa governação tornou-se uma exigência incontornável dos mercados financeiros que favorece as coligações reformistas contra a corrupção (3.3.1).

Ao mesmo tempo, maior abertura comercial está associada a menor corrupção, dadas as outras características estruturais de cada país, o que se pode demonstrar econometricamente (3.3.2).

Assim se abrem perspectivas para compatibilizar competitividade e solidariedade (3.3.3).

3.3.1. Bom governo é micro e macro

A boa governação, exigência incontornável dos mercados financeiros, é explicitada pelos cultores do constitucionalismo económico e das expectativas, as mais das vezes em luta contra as consequências despesistas do arbítrio orçamental, que responsabilizam pelo aumento de impostos e da inflação.

As oscilações do crescimento económico nas economias em desenvolvimento têm a mesma fonte. O processo orçamental, o funcionamento das instituições monetárias e a própria constituição fiscal passam assim a ser objecto de análise nos mesmos termos do que a balança de pagamentos ou outros indicadores de solvabilidade macroeconómica.

3.3.2. Abertura internacional e corrupção

É clara a relação empírica entre boa governação e produto por cabeça, mas tem sido mais difícil relacionar abertura comercial com crescimento económico (1.3.2).

O argumento segundo o qual a globalização tem um efeito causal positivo na governação é uma tentativa para sair deste último impasse sem cair numa posição de conformismo relativamente à melhoria gradual da governação nos países em desenvolvimento. Esta é expressa através de comparações desses países com barcos cujo nível aumenta com a maré cheia, suposta representar a economia mundial em expansão.

Existem várias razões pelas quais a abertura comercial deveria estar associada a uma menor corrupção, a primeira das quais devida aos custos do proteccionismo na procura de rendas por parte dos cidadãos mais preocupados em defender interesses instalados do que em desenvolver actividades produtivas. Mais geralmente, o nexo causal da abertura para a corrupção resulta da combinação de posições de monopólio e de discricionariedade administrativa, em que tantas instituições reguladoras assentam.

A seguinte equação, na qual, para cada país i no período t, o índice de corrupção aparente (crescente de 1 a 10, denotado por COR) depende da abertura comercial em percentagem do PIB (denotada por AB), do nível do PIB por cabeça, de um índice de liberdade política (LPol), de outras variáveis, nomeadamente a distância aos principais mercados (Outr), de um índice de políticas económicas (PolE) e de um erro aleatório ilustra o argumento:

CORit = b 0 + b 1 ABit + b 2 log (PIBit)+ b 3 LPolit + b 4 Outrit + b 5 PolEit +e it

A hipótese b 1>0 é aceite usando uma amostra que inclui dados de painel para dois índices de corrupção muito usados, o do International Country Risk Guide (ICRG, 140 países durante o período 1984-2000) e o do Transparency International (TI, 99 países para os períodos 1980-85, 1988-92 e 1995-2000).

Demonstra-se que, nessa amostra, o efeito de um aumento de 10% na abertura comercial é uma diminuição do índice de corrupção do ICRG de .03, contra .09 para um aumento de 10% no produto por cabeça. Tendo em conta uma abertura inicial de 20%, o aumento de 10% equivale a dois pontos de PIB, o que é muito. Os resultados para o índice de TI são .06 para a abertura e .17 para o produto.

3.3.3. Competitividade e solidariedade

O desenvolvimento da cidadania, ou da sociedade civil, envolve pois o respeito concreto dos direitos humanos, que inclui a democracia e a solidariedade. É assim que a economia ajuda a combinar competitividade e solidariedade de modo a terem resultados para o homem concreto.

Importa promover coligações reformistas que dêem mais lugar à sociedade civil do que é comum nas democracias mediáticas, sendo certo que não será possível combinar a competitividade necessária com a solidariedade desejada sem as empresas e suas associações.

As perspectivas da ronda mundial de comércio e desenvolvimento aberta em Doha pela Organização Mundial do Comércio em Novembro passado são decisivas para ultrapassar a conjuntura recessiva da economia mundial. A conjuntura actual também diminui a capacidade das economias emergentes atraírem investimento estrangeiro, ao mesmo tempo que estagna a ajuda pública ao desenvolvimento das nações menos desenvolvidas. Quer a abertura comercial quer a financeira representam respostas válidas da governação nacional, regional ou mesmo global. Mas, talvez ainda mais importante para o bem comum, a abertura comercial e financeira contribui para uma melhor governação das empresas, ou pelo menos está associada a uma menor corrupção aparente.

CONCLUSÃO (INTERDISCIPLINAR)

Embora seja estritamente económica a perspectiva de arrumar a casa defendida acima, é consistente com construções interdisciplinares assentes na partilha. Sem embargo, a utilidade prática destas construções depende da sua capacidade em esclarecer o porquê da a percepção de que a globalização aumentou a pobreza no mundo inteiro - quando ainda não se conseguiu sequer estabelecer cabalmente se a percepção corresponde à realidade.

Parece, pelo menos, possível explicar este falhanço da análise social, única susceptível de cotejar percepções e realidades tão variáveis quantas as comunicadas diariamente aos habitantes do planeta. É que a difusão da tecnologia de pesquisa científica e da liberdade de escolha das pessoas facilitou menos a comunicação entre ciências sociais do que seria de esperar. O peso dos organismos representativos de cada uma das ciências sociais e humanas explica a menor atracção por carreiras interdisciplinares, julgadas arriscadas demais, mesmo em sistemas de ensino e investigação melhor governados do que o nosso.

Os consensos entre economistas podem ajudar cada um dos cidadãos a tomar posição sobre três questões fundamentais da vida em sociedade. Primeiro, encorajando a difusão global da governação democrática, sem embargo do enviesamento anti-reformista das democracias mediáticas. Depois, denunciando a resposta perversa à globalização dos mercados que consiste em fechar as economias umas sobre as outras. Por fim, convencendo o próximo de que aliviar a pobreza exige inovações na governação que defendam as populações da cleptocracia doméstica e da burocracia internacional.

Daí retiro que, com a globalização dos mercados, é a proximidade da governação que pode dar esperança às pessoas. Haverá decerto quem considere a conclusão cínica, circunstancial, ou ambas as coisas. Mas também haverá quem se convença a arrumar a casa, começando pela portuguesa, que é - a todos os títulos - mais próxima!

BIBLIOGRAFIA REFERENTE A CADA PONTO

1.1.

1.2.

1.3.

2.1.

2.2.

2.3.

3.1.

3.2.

3.3.