Europa para inglês ver

Jorge Braga de Macedo

Introdução

Por duas vezes, no outono de 1997 e de 1998, fui chamado a falar no Centro Português de Estudos (CPE). Compreende-se a insistência amiga de Maria António Cameira e dos outros dirigentes do clube. O conceito inovador com eles acordado para a primeira chamada envolvia um duelo verbal com o representante britânico na EU, Sir Stephen Wall, embaixador em Lisboa quando eu presidia à comissão parlamentar dos assuntos europeus e com quem mantivera excelentes relações. Ora a ausência inesperada do embaixador levou o professor a uma segunda chamada ao CPE, da qual resultou uma razoável sintonia sobre a Europa e o mundo. Como então revelei, Sir Stephen teve a bondade de corrigir a tradução não oficial para inglês da lei nº 20/94 de 15 de Junho "Acompanhamento e apreciação pela Assembleia da República da participação de Portugal no processo de construção da União Europeia" constante de Portugal na União Europeia Lei de acompanhamento e apreciação, Assembleia da República Comissão de Assuntos Europeus, Lisboa, 1994, pp.145-150.

Renovo-lhe aqui o agradecimento, bem como a António de Almeida, que agora me pede para escrever umas linhas sobre aqueles antiquíssimos eventos. Faço-o com gosto, aproveitando intervenções posteriores sobre o tema apaixonante da globalização e governação (G&G), que me tem ocupado no centro de desenvolvimento da OCDE. Nesta altura em que se renovam as perspectivas recessivas de há três anos atrás, tratar da Europa numa óptica de G&G é reconhecer que o adiamento das reformas promotoras de competitividade empresarial fragilizou toda a zona do euro.

A Europa das cimeiras de Lisboa ou de Estocolmo sobre a nova economia é, na sabedoria tradicional do nosso povo, "para inglês ver". Ou seja, essa Europa nem está connosco nem é para nós. Organizei este escrito em cinco secções. Começo pela cultura, vou daí para a transparência financeira, depois para as reformas e para a pressão dos pares que caracteriza a "nossa" Europa. Antes da conclusão, aplico o binómio G&G a Portugal. Resume-se o argumento no parágrafo seguinte.

Na economia global, uma mudança, esperada ou realizada, dos juros no curto prazo tem um efeito nas expectativas de lucros futuros que será máximo num mercado emergente, onde haja pouca liquidez e profundidade. A maturidade do mercado funciona como um seguro. Por outras palavras, a pertença ao euro consagrou a liberdade financeira dos portugueses, interrompida durante cerca de cem anos. Ao contrário da liberdade política (interrompida essa durante menos de metade do intervalo anterior), que se esgota no presente, a liberdade financeira implica a sua própria sustentabilidade futura. Por isso é que as liberdades futuras dos portugueses estão ameaçadas pelo adiamento, desde 1993, de reformas estruturais na área da justiça, segurança, etc. Está-se a verificar o "esticão" do euro.

Cultura

A nossa autonomia cultural depende de nós próprios enfrentarmos os desafios concretos. Enfrentar desafios abstractos que depois não se verificam ajuda a mistificar. Para distinguir os desafios uns dos outros, é preciso cultura. Não apenas a cultura tradicional, associada aos chamados "intelectuais de esquerda", mas a cultura económica, que muitos ainda desprezam, embora cada vez mais fingindo conhecer.

A cultura económica mudou muito nos últimos 20 anos, regressando de certo modo àquilo que tinha sido a cultura económica tradicional, designadamente no século XIX. Isto não tem conotações ideológicas. Apenas o bom-senso de que o poder económico dos Estados é muitas vezes utilizado para guerras e portanto deve ser limitado. O poder de decidir, quer de guerras no sentido militar, quer de guerras monetárias, como roubar às pessoas o seu poder de compra através da desvalorização cambial sempre teve limitações na história portuguesa e nos países com os quais nos comparamos.

Basta lembrar as Cortes: para quebrar moeda o rei tinha de ouvir uma assembleia com representantes de todo o reino, embora não tivesse de seguir a opinião das cortes. Ora bem, sempre existiram limitações ao poder do Estado fazer guerras, sejam elas guerras propriamente ditas ou agressões financeiras. Estas limitações fazem parte da cultura europeia, e, com a criação da moeda única, estão de volta. Não há dúvida que o regresso destas limitações demorou um pouco em todos os países europeus excepto na Alemanha. Contudo nos anos l980 lá foram um a um regressando à estabilidade dos preços. Ironicamente os países mais pobres tiveram mais tempo a ilusão de que poderiam eventualmente utilizar instrumentos de política económica como a desvalorização cambial para bem da população. Ora, pelo contrário, quanto mais pequeno e pobre o país, menos ganha em desvalorizar. Certo é que as mudanças que se verificaram ocorreram mais devagar nos países mais pobres.

A Irlanda é um excelente exemplo, porque muitos economistas célebres se arrependem hoje do que escreveram sobre a Irlanda há uns anos atrás, quando acusaram o monetarismo das autoridades de agravar o desemprego. Apesar das críticas comunitárias ao orçamento para 2001, a Irlanda continua a ser a pérola, não só da Europa, mas do mundo em termos de crescimento com estabilidade. Foi o primeiro país a mudar de regime económico, por acaso num governo de minoria cristã-democrática em 1987. A Irlanda era membro do Sistema Monetário Europeu (SME) desde a sua fundação, para se separar da Inglaterra com quem tinha estado em união monetária durante muitos anos. Essa união monetária era bem diferente da actual zona euro porque oprimia a identidade política e cultural da Irlanda.

Portanto já se está a ver que para mim o euro não quer dizer transferir mais poderes para Bruxelas ou para Frankfurt, pelo contrário, a cooperação europeia só funciona desde que seja bem definida e portanto limitada, como se pretende que aconteça na zona do euro. No caso da Espanha, de Portugal, no próprio caso da Itália e no caso da Grécia, a entrada no SME foi equivalente ao país dizer: "eu aceito regras que me ultrapassam" tal como ultrapassam cada um dos outros membros.

Já não é um funcionário, um gabinete, a decidir se vai mudar o valor da moeda ou não, um pouco como as Cortes de outro tempo. É antes uma reunião de pares, altos funcionários do Tesouro e dos Bancos Centrais, que discutem entre si o que se vai passar quanto ao valor das moedas todas. Não é um sistema ideal, mas funciona. Pelo menos tem funcionado.

A mudança da cultura económica em favor da estabilidade é um dado adquirido. Será que está tudo bom na Europa? Não está. Temos aqui problemas. Curiosamente, não são aqueles que se pensava, como a instabilidade cambial. É antes o de não haver uma política monetária tão única como se pensava. Porquê? Precisamente pelo mesmo tipo de argumento que levou à evolução das cortes medievais e depois da experiência de das cortes e da cooperação monetária das últimas décadas.

Há aqui um problema de saber quem é que é responsável perante quem, que é um problema que se fala aqui da responsabilização e da independência nem as seis pessoas de várias nacionalidades mas que são supostas representar o interesse europeu. Por isso quem manda não é o Banco Central Europeu (BCE) mas é o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) que, além dos seis membros do BCE (cinco senhores e uma senhora), inclui os governadores dos doze Bancos Centrais nacionais (o grego desde o início de 2001). Essas doze pessoas não se vão despir das suas vestes nacionais tão facilmente quanto isso!

E portanto a ideia convencional dos economistas e dos participantes no mercado, de que vamos ter uma política monetária muito centralizada e uma política orçamental muito descentralizada é exagerada! Virá a ser assim? Pois virá com certeza. Não tem sido assim. E portanto há aqui uma fonte de incoerência entre política comunitária e orçamental que não vai ser tão forte como se receava.

Mas nem por isso temos uma verdadeira política monetária única. E é pena, numa altura de crise internacional. Tanto mais que há uma competência para além da política monetária, que fica inteiramente nacional e que é a competência mais importante, a da supervisão. Controlar as falências bancárias, problema ainda mais grave neste momento do que durante a crise dos mercados emergentes entre 1997 e 1999.

Essa competência fica nacional. Não sabemos qual é o modelo e se tiver que passar para a união não é fácil, não tem havido debate sobre esta matéria. Há resistências, e para passar para a globalidade, novo problema, a instituição mais própria para o fazer seria o FMI, contudo não tem perícia nessa matéria. A perícia existe no Banco de Pagamentos Internacionais (BIS) que está em Basileia e que ninguém pensa em trazer para as capas dos jornais.

Estes são problemas novos, mas às vezes discute-se a questão de saber se a globalização actual é melhor ou pior do que do padrão ouro, se é irreversível se não? Concorda-se que a globalização está para durar, até porque a arquitectura comercial mundial está assente na Organização Mundial do Comércio (OMC), não correndo os riscos de proteccionismo que ocorreram nos anos trinta.

Dada a OMC, as referências ao FMI e ao BIS servem para introduzir a discussão a que se tem assistido sobre a arquitectura do sistema financeiro internacional, e que se deixou atrasar logo que o risco da crise passou. Portanto temos aqui um problema que é o de não haver instituição na área que mais precisa de ter uma regulação global. Há quem diga que se tem de criar uma instituição nova e tudo isso leva tempo e a instituição tem de dar as suas provas. Reparem portanto que, mesmo na área em que se pensa que havia alguma centralização, que é o caso do euro, ela ainda está muito longe de ocorrer!

Qual é o lado bom? É que não há descoordenação com a política orçamental, desde que haja cultura de estabilidade. Qual é o lado mau? Ém momentos de instabilidade internacional, como foi o Outono de 1998, exigem-se mecanismos de gestão da crise também globais, não apenas europeus. Como se sabe, o mecanismo foi antes de mais nacional, e mais específicamente chamou-se Alan Greenspan.

O euro foi criado num período de relativa estabilidade dentro da UE. Os países do euro, em especial, fizeram um grande esforço para manter a estabilidade interna, mas no exterior havia grande instabilidade, da Ásia á Rússia, passando pelo Brasil.

Todos têm consciência que, enquanto não aparecerem as notinhas com o euro, vai haver a ilusão de que não é moeda. Ora também perdemos a memória do tempo em que era o ouro. O ouro era de qualquer país, vivemos já durante oitenta por cento ou mais da nossa história, com uma moeda internacional que era o ouro. Lá tinha uma cunhagem que era feita localmente com um retrato. Enquanto não houver notas do euro, o euro não vai parecer real, embora o seja. Só que não se pode mudar a sensibilidade das pessoas. Portanto há aqui problemas que se vão manter durante uns anos antes de podermos ter a certeza de que isto funciona.

Apesar do debate actual, a arquitectura financeira não ia com certeza renegar a liberdade financeira, iria antes escorá-la numa supervisão bancária mais eficas, feita pelo FMI, BIS, o Forum para a Estabilidade Financeira proposto pelo G7 e presidido actualmente pelo Secretário Geral do BIS ou ainda o G-20, presidido pelo ministro das finanças do Canadá e incluíndo os principais mercados emergentes.

Transparência

Os mercados financeiros diferem tanto dos mercados de bens e serviços como do mercado de trabalho. Desde logo no horizonte da sua actuação. Enquanto que o ajustamento no mercado de bens e serviços e de trabalho se pode fazer ao longo do ciclo de negócios, ou seja uns 3 a 5 anos, os mercados financeiros têm horizontes de segundos e de décadas ao mesmo tempo. Essa a razão pela qual são esses mercados têm registado, nos últimos anos, uma preocupante volatilidade que tem afectado sobretudo economias emergentes como as dos "tigres asiáticos", a russa, ou a brasileira. Essa volatilidade é essencial, reflectindo apenas o facto de decisões instântaneas estarem ligadas a decisões para o ciclo vital. As instituições financeiras, nomeadamente a banca, por melhor que funcionem nunca poderão eliminar esta instabilidade fundamental, nem dispensar os mercados financeiros, únicos em que transacciona o futuro, com os riscos inerentes.

Desde logo, lembrar que a economia - quer a micro quer a macroeconomia - não pode estar contra a banca mas também não deve existir para a banca. Verdade elementar que Portugal só aprendeu com a entrada no mercado único europeu em serviços financeiros em 1993. Antes disso, a economia nunca esteve com a banca: ou esteve contra ela ou esteve debaixo dela. Ora a competitividade das empresas na economia global depende cada vez mais de uma intermediação financeira transparente e sólida. Transparencia e solidez não são fáceis de combinar. Nem na finança global, nem na nacional. Todos sabem que a falta de confiança nestas matérias é contagiosa. A fragilidade de uma única instituição financeira pode generalizar-se. Por mais aberta que seja a economia nacional e concorrencia internacional, a falta de confiança prejudica sobretudo os residentes. Foi o que nos aconteceu há cem anos, quando fomos obrigados a suspender a convertibilidade e abandonámos o padrão-ouro.

Durante os anos 1960, o financiamento da indústria dentro do grupo financeiro coexistiu com o nascimento de um mercado de capitais e com o recurso das empresas exportadoras ao crédito bancário. A supervisão financeira cabia a uma inspecção geral de crédito e seguros. Sistema que ainda hoje vigora no Canadá, Noruega, Dinamarca, e Macau e que foi restabelecido no Reino Unido em 1997 com o Financial Services Authority.

O congelamento da banca e seguros nacionais manteve-se até à revisão contitucional de 1989. Só em 1992 foi possível desmantelar o gigantesco "grupo Estado". É isso que explica a restauração da convertibilidade plena do escudo e a participação no mercado financeiro europeu. Liquidada uma situação anacrónica na Europa ocidental, foi rápida a liberalização financeira. Justificavam-se assim as margens de intermediação bancária e seguradora que se verificaram entre 1989 e 1992.

A reintrodução de controlos cambiais em 1990 visava dar e banca maior solidez. Mas suscitou o aumento da taxa de juro dos empréstimo ao Estado e es empresas portuguesas. A transferência de recursos para o sistema financeiro que a protecção implicava coincidiu com a mudança gradual do regime económico em direcção e estabilidade dos preços e e solidez das finanças públicas. Com a recuperação da confiança no futuro da economia portuguesa, exigiu-se maior transparência.

A inspecção geral de crédito e seguros havia sido substituída por três entidades de supervisão com tradições muito diversas: o banco central, o instituto de seguros fundado há vinte anos e uma comissão do mercado de valores mobiliários com menos de cinco. O banco central, dos mais antigos da Europa e do Mundo, não tem tradição de supervisão. Atente-se que foi um banco privado até 1974 - pouco capaz de vigiar os seus pares - e que depois se transformou todo o sistema bancário num monobanco de tipo soviético - onde de novo o banco central não sobressaía a não ser no que toca e política monetária e cambial. Assim se chegou à lei bancária de 1993 sem a tradição de supervisão que o nível de desenvolvimento financeiro exigia. Por isso a liderança da autoridade monetária não iria melhorar a desejável cooperação entre as três entidades.

A supervisão prudencial tem de ser uma actividade separada da defesa da estabilidade monetária. Esta, de acordo com as regras do SME, determina as taxas de juros até um mês. A independência dos bancos centrais nacionais visa precisamente garantir a afectação das taxas de juro a muito curto prazo ao objectivo da estabilidade cambial exigida pelo euro e herdada da tradição de meio século do Bundesbank alemão.

A independência não se aplica ao papel do banco central como prestamista de última instancia, papel que procura garantir a solidez do sistema financeiro. Como um banco central não pode ser e não ser independente, o Bundesbank, independente, não tem a seu cargo a supervisão bancária. Generalizando este modelo federal, a supervisão prudencial passaria para o nível da união. Contudo, a centralização pode reforçar a burocracia comunitária, contrariando o princípio da proximidade do cidadão.

Há leis orgânicas recentes de bancos centrais que tentam combinar a independencia com a supervisão, num chamado superbanco nacional. É assim em Portugal Espanha e França. A preferencia pelo superbanco nacional pode revelar a vontade de responsabilizar democraticamente os bancos centrais, em vez de, desde já, os tornar agências do futuro banco europeu. Mas também permite que entidades independentes tenham a seu cargo a supervisão prudencial. Eventualmente com prejuízo para a solidez e para a transparência.

Entre o modelo federal alemão e o do superbanco nacional, não tem havido consenso quanto e melhor maneira de combinar solidez e transparencia financeira na Europa. É um desafio que interessa também aos cidadãos portugueses. Se não conseguirem uma intermediação financeira transparente e sólida, as empresas portuguesas arriscam-se a não ser competitivas no mercado global, podendo sê-lo. Arriscamo-nos também a que a poupança das famílias portuguesas deslize para paraísos fiscais ou se reduza abaixo das necessidades do ciclo vital. Sem solidez e sem transparência, poderiam ficar impunes práticas criminosas, ameaçando quer a ética empresarial quer a notação creditícia.

Reformas

Já falei na crise dos mercados emergentes, e depois há aqui um assunto que é muito importante também e que deve ser tomado com muito cuidado que é a perda da autoridade do raciocínio económico. Ela é tanto mais grave quanto é certo que economistas de absoluto primeiro plano têm ocupado posições de decisão nos Estados Unidos e nas organizações internacionais. Portanto nós sentimos aqui que há qualquer coisa que deve ser feita, mas não convém emendar quando a emenda é pior que o soneto. Isso é que vamos tentar evitar. É meu dever fazê-lo e digo-vos sinceramente que o inimigo é a atitude pública à volta dos economistas, o cepticismo que se verifica à volta do poder da ciência económica para resolver problemas.

É assim, é a vida e temos que o aceitar, mas uma maneira de lutar contra esse cepticismo é ser mais cautelosos com aquilo que a ciência económica nos permite dizer e com o que não permite dizer, e se depois um Prémio Nobel perde dinheiro e tem menos prestígio pois paciência. Não vamos também agora aqui, entre pessoas polidas, aproveitar para por causa do Crime do Padre Amaro deixar de ter a religião dos nossos pais ou avós, ou a nossa própria. Portanto este ponto é óbvio e não quero insistir nele, em todo o caso penso que nem sempre é claro. Faz parte outra vez dos tais casos de desmistificação, tão importantes entre nós.

Outra desmistificação necessária refere-se não aos economistas, mas aos políticos eleitos, pelo facto de não gostarem de reformas. Isto é geral nas democracias, e depende um pouco da maneira como interagem com os empresários e com a sociedade civil que tem sido uma maneira difícil em muitos países tem que se reconhecer, não só no nosso. A tendência para o político é ser aquilo que um autor americano chama um vendilhão da prosperidade. Vem aqui, fala muito bem, muitos sorrisos, muito diálogo, muitos apertos de mão, mas o certo é que a última coisa que vai fazer é uma reforma que cause impopularidade. Eu explico o caso, faço-o com todo o à vontade. A peça que explica isso melhor é uma peça sobre a Reforma da Função Pública feita pelo Dr. Oliveira Salazar nos anos 30 e obviamente que a estou a citar apenas porque se trata de um autor português que não se costuma associar ao reformismo. Como ninguém sabe muito bem o que é que se faz com os impostos, quando se diz que temos que ter sectores estratégicos, todos dizem que sim. Depois pergunta-se quem é que paga, é o Senhor? Não, é ali o vizinho. Ora bem, então está aí o ponto. O vizinho!

Quando há fundos para gastar, sabemos muito bem que os grupos melhor organizados vão gastá-los melhor. É assim para os consumidores, é assim em tudo. E tem a ver com a proximidade do controlo sobre a despesa por oposição à da receita. É assim, não tem nada de mau.

Agora. dou um exemplo político hipotético que diz respeito à reforma espacial duma sala de conferência como esta, baseada em não sei que descoberta da tecnologia da informação. Estou a falar e há uma altura em que decido cortar a luz e o som para este grupo que está à minha esquerda, enquanto que o grupo da direita vê e ouve à mesma. Bem, admitindo que estão interessados na exposição, este segundo grupo fica melhor do que o outro. Porque uns estão no escuro e outros vêem a exposição. Vai haver aplausos deste lado? Silêncio e eventualmente um ou outro a dormitar como já estava antes. Mas os que deixaram de ver, vão protestar. Portanto, quem beneficia de uma reforma cala-se, não vem para a rua dizer, "que extraordinário governo temos...". Mas quem é prejudicado, queixa-se.

Portanto, conclusão, se não queres problemas, fala de reformas, mas não as faças. É um ponto conhecido o que descrevo aqui. Há uma literatura e curiosamente Salazar fala nisto a respeito da função pública. Porque é que ele não foi mais longe, não mudou as letras, não fez mais reclassificações? "Não, não, nada disso, olhe aqueles que vão ser prejudicados vêm para a rua fazer barulho, agitam as massas. Os outros ficam calados. E acho que foi de facto a última reforma da função pública portuguesa nos anos 30. E não houve mais. Houve tentativas mas não surtiram efeito. Aqui está, o medo de perder uma posição numa democracia é o que leva o governante a não ousar fazer uma reforma. E é racional, não estou a criticar. Até se aplica quando não há partidos, como mostra o exemplo de Salazar.

Pressão dos pares: a "nossa" Europa

Na crise, só duas rapidíssimas definições, o problema dos mercados emergentes que nós aliás fomos até há poucos anos. Os chamados mercados emergentes são países em que se não acredita ainda que sejam verdadeiramente estáveis. São estáveis durante um certo tempo, mas pensa-se que aquilo vai mudar. Portugal já passou por aí. Já teve que dizer: "Nós somos estáveis!". respondem-nos "Não" qualquer dia vêm aí outras nacionalizações, vem aí outro 11 de Março, vocês não se entendem, vocês não são capazes"! Muitas vezes é a nossa própria memória colectiva que ajuda a dar essa visão. Muitas vezes não são os outros que pensam assim, somos nós e como tem sido o caso de Portugal.

Só quero aqui ter um bocado de cuidado com as diferenças que têm os mercados emergentes uns dos outros. Diferenças radicais que devem ser tidas em conta. Não se pode generalizar para a crise global.

Há sempre a mania da crise, mas uma crise financeira é diferente de uma crise apenas cambial, de uma crise da dívida ou de uma crise bancária. E se se trata de uma crise nacional, será possível ser só nacional? Provavelmente não. Mas então se for regional, como é que a faz? Não há mecanismos. E global ainda menos, pelas razões que referi. Falou-se aqui nos blocos, a razão da gravidade desta crise é que há o bloco japonês que não está a resolver (está antes pelo contrário a contribuir para) a crise e isso desequilibra completamente a situação. A Europa está indiferente, diria, e portanto o que nós temos neste momento é um agravamento da crise porque há apenas uma parte, e não foi por acaso que o Brasil se aguentou em 1998 .É que realmente houve então e há agora um pólo que está a ter hegemonia e que está portanto a controlar o contágio, houve e há o bloco asiático em que o país hegemónico é ele próprio parte do problema e houve e há o bloco europeu em que não se passa nada.

Não se passou nem passa nada, porque se mantém um bloqueio das reformas em toda a parte. E no próprio governo alemão isso já tem sido notado que muitas das reformas económicas que eram necessárias e que se pensava que o anterior governo não fazia porque estava muito cansado, esgotado, etc. Enfim, lembram-se concerteza desta argumentação. Porque é que isto é grave? Porque mesmo que eu acreditasse que restrições aos câmbios ou ao comércio pudessem resolver o problema, por acaso acho que não, elas tinham que ser temporárias e tinham que ser bem administradas. Quem é que as administra? Se não há capacidade para as coordenar, não há maneira de as administrar. E vem aqui agora uma crença, talvez singular, na pressão dos pares.

É que eu penso que apesar de todos os seus defeitos os mecanismos europeus funcionam. Têm mostrado que funcionam, se não forem federalizados demais, nem descentralizados demais. E na área monetária por acaso até têm funcionado. Na área da supervisão não é assim, já o disse, mas acho que funcionam, acho que é o melhor que temos. Por que é que é o melhor que temos? Porque reparem, se esta tendência para as reformas se verifica verdadeiramente, eu penso que é da natureza das democracias mediáticas. Qual é a minha única esperança? Já sei que, se fecho a luz para ali, temos um problema porque berram os de fora mas os outros não aplaudem, antes ficam em silêncio. Mas agora suponham que eu vou a Bruxelas e conto esta história aos outros que são iguais a mim, que têm exactamente a mesma experiência. Se calhar eles vão dizer, olhe que o que eu fiz foi isto e há outra maneira e faça dessa maneira; pode dar para o bem e pode dar para o mal. Agora há um outro nível no qual isso se discute e isso é bom. Isso é muito bom. Não resolve tudo, não, mas resolve um bocado, e, na minha perspectiva, a esperança é por aí.

Por isso é que eu acho que não é um federalismo exacerbado, mas sim a continuação e o aprofundamento da coordenação, quer a nível europeu, quer depois a nível global com os mesmos métodos, que vai permitir à Europa contribuir apesar de tudo para resolvermos esta crise. Como já disse, neste momento em várias partes do mundo está a ser altamente ameaçadora dos padrões de vida e dos valores em que assentam uma economia de mercado e a democracia.

Retira -se daqui que os Estados Unidos têm tido um papel de liderança quer do seu bloco quer do mundo, em parte porque a Europa considera que não está afectada por esta crise, o que é um erro, porque está ou vai estar. A baixa das taxas de juro americanas no outono de 1998 e na primavera de 2001 mostrou realmente a capacidade que os americanos continuam a mostrar de antecipar e de resolver os problemas. Portanto apanham um choque maior, mas também reagem mais e mais depressa.

E finalmente uma observação necessária: ouve-se mais o que dizem os economistas porque numa crise global eles, têm menos capacidade de afectar as decisões. É assim e temos de o aceitar e eu aceito-o com tranquilidade. A tentação do economista de aparecer como bombeiro não é correcta. O papel do economista, com base na ciência que conhece, é realmente o de mostrar os perigos das soluções alternativas. Isto é, se por acaso nós agora restringirmos os movimentos de capitais, se por acaso dissermos que vamos ter este sector estratégico e mais este e mais aquele, não vão ser as gerações futuras a pagar? Vão. E nós sabemos quantificar isso? Ou quando se consegue quantificar ou quando não se consegue quantificar? Aí há consensos contra economistas profissionais e isso pode ajudar cada um de vós a tomar posições. Nunca vai ser simples. Agora fechar as economias umas sobre as outras é certamente uma resposta perversa à globalização.

G&G em Portugal

Quando surgiram os primeiros incentivos à internacionalização empresarial no orçamento do estado para 1992 (os chamados FRIEs), houve que convencer os responsáveis das empresas não financeiras que a competitividade global estava ao seu alcance e que podiam viver sem o ciclo infernal inflação-desvalorização. Poucos decerto se lembram disso agora, até porque foram escassos os resultados de inúmeras reuniões com empresários de Norte a Sul do país. Era a psicologia da crise, que acabou por se auto-justificar.

Como economista interessado pela história da nossa cultura económica e dos mitos monetários a ela associados, lamento o esquecimento da recessão de 1993-94, porque não será decerto a última. Basta notar que em 2000-01, de acordo com as últimas previsões, a economia portuguesa já diverge quase tanto da média europeia quanto o fez nessa altura, e ainda nem sequer se declarou a recessão!

Além disso, os empresários portugueses têm bons motivos para desconfiarem da continuidade das políticas económicas: conhecemos quatro revoluções vitoriosas que alteraram radicalmente o contexto institucional, geralmente com repercussões graves nas famílias e nos empresários.

Mais, os mercados internacionais acreditaram na mudança de regime em direcção à estabilidade e à convertibilidade que abriu caminho para a participação das empresas portuguesas na globalização de mercados uns dois anos antes dos parceiros sociais e da própria sociedade civil.

Mas, esse mesmo esquecimento permite realçar ainda mais um grande consenso quanto à vantagens da internacionalização empresarial para as empresas portuguesas, grandes e pequenas. A internacionalização empresarial é vista como um indicador seguro da maturidade da economia de mercado construída em Portugal desde que, em 1989 se aceitou finalmente a reversibilidade das nacionalizações decretadas após o 25 de Abril de 1974. Este acto fundador da mudança de regime económico e financeiro em Portugal em direcção à estabilidade ocorreu depois de se registarem eleições livres na Polónia e na Hungria.

Quase doze anos volvidos sobre essa aposta ganhadora no respeito dos direitos de propriedade em Portugal, já se aceita também sem grande debate a aposta subsequente na abertura dos mercados às trocas de bens, serviços e capitais. Esta abertura, que caracterizou a segunda metade do século XIX, foi interrompida quando Portugal saíu do padrão-ouro em 1891. Apesar de promessas em contrário em 1910 e 1931, só foi re-iniciada com a entrada há 50 anos na Organização Europeia de Cooperação Económica (que deu origem à OCDE), a participação na União Europeia de Pagamentos, continuada com a criação da Associação Europeia de Livre Câmbio (EFTA) em 1960, com a associação em 1972 e adesão em 1986 à Comunidade Económica Europeia e consagrada com a restauração da convertibilidade de escudo em fins de 1992, cinco anos antes do prazo limite acordado com Bruxelas.

Nos encontros de economia de Bicesse, em 24 de Abril de 1999, sugeri tornar-se a internacionalização empresarial um projecto mobilizador para os portugueses, na medida em que reflecte estratégias empresarias compatíveis com as pertenças dos cidadãos, servindo por isso para prosseguir o bem comum dos portugueses. Parece cultural, e é, mas, não me canso de o repetir, a cultura não é inimiga da economia, antes pelo contrário. Isso é particularmente verdade em matéria de internacionalização - pessoal e empresarial.

A internacionalização é motor de desenvolvimento dos pequenos países europeus com mais tradições de estabilidade financeira, que são também os mais prósperos. Como a reputação financeira de Portugal é mais recente, a presença de empresas portuguesas no exterior também é limitada, mas o investimento directo das empresas portuguesas no estrangeiro tem assumido um ritmo crescente ao longo dos últimos anos, principalmente por parte das empresas maiores à escala nacional.

A globalização pode pois agudizar conflitos entre empresas ou mesmo na escolha da estrutura económica. Por exemplo empresas que fornecem produtos numa situação de monopólio, como a electricidade ou serviços telefónicos, podem maximizar os recursos para participarem directamente no processo de internacionalização. Alternativamente, podem transferir esses recursos via tarifas e preços mais baixos, reduzindo assim os custos de produção de todas as empresas. Naturalmente, o equilíbrio entre estes objectivos, como reflexo que é do bem comum dos portugueses, não é de hoje. A internacionalização torna-o incontornável.

Se ainda há poucos anos muitos empresários portugueses achavam a internacionalização mais distantes no futuro do que se revelou ser verdade, a administração pública, essa, não se adaptou ainda às necessidades da globalização, em parte porque o desenho institucional é também aí inadequado. Existem apoios por utilizar e há falta de coerência entre incentivos, como por exemplo os fiscais.

As empresas que recebem apoio directo são uma pequenissima minoria; para a maioria importa assegurar condições favoráveis à produtividade como baixas taxas de juros, inflação e fiscalidade e condições institucionais favoráveis como um sistema juridico funcional e legislação clara sobre por exemplo falências e regras laborais. Já disse acima que a timidez de certas reformas estruturais desde a recessão de 1993/94 pode levar ao esticão do euro, ou seja a não aproveitarmos esta extraordinária oportunidade para, finalmente, ousarmos enriquecer.

Está a moda referir o Estado como um facilitador de alianças e parcerias entre agentes economicos (papel "casamenteiro") propiciando investimento directo estrangeiro estruturante que permita às empresas portuguesas tirar proveito de produtividade elevada, boas infraestruturas fisicas e tecnológicas e custo de capital mais baixo. A importância primordial das condições macro no mercado doméstico faz parte do casamento, mas o mais importante, como os holandeses descobriram há uns quinze anos atrás, é o casamenteiro deixar os parceiros sociais em paz. Isto também se aplica ao projecto mobilizador da internacionalização empresarial. Tudo menos o regresso dos homens sem sono já não das nacionalizações mas das internacionalizações. Porque quem fica com insónias só de pensar nisso é o contribuinte.

Conclusão

No Verão de 1999, contudo, a reputação financeira portuguesa sofreu um revés muito duro, de que a imprensa internacional se fez eco. O governo português entendeu bloquear uma decisão empresarial de parceria com Espanha, levando as partes envolvidas a queixar-se à Comissão Europeia. A nossa dependência aumentou com a infeliz decisão, e as consequências não se fizeram esperar.

O "spread" a favor de Espanha nos instrumentos a dez anos aumentou, tal como o índice de corrupção aparente, as despesas primárias em percentagem do produto interno bruto, os aumentos salariais, a balança das transacções correntes e o endividamento das famílias. Todas a organizações internancionais e todos os economistas que seguem Portugal julgam que o governo é "para inglês ver". Quando voltará então a Europa a estar com os portugueses? Questão que o CPE virá decerto a abordar nos seus próximos dez anos.

Praia das Maçãs, 21 de Abril de 2001