Prefácio

Jorge Braga de Macedo

Há várias maneiras de singularizar os prémios Nobel em economia. Porque são concedidos há pouco mais de trinta anos, graças à generosidade do banco central da Suécia. Porque são o único prémio Nobel dedicado a uma ciencia social, por vezes considerada menos cientifica - precisamente por ser social. Porque foram atribuidos a cientistas que, além de ser exemplos de competência e dedicação profissional, partilham um interesse genuino pela melhoria das condições de vida dos seus semelhantes.

Ao usar este último aspecto para motivar a sua obra, a autora corre o risco de homogeneizar uma colecção muito variada de personalidades, métodos e orientações. Ainda bem que Marilu Hurt McCarty correu esse risco porque assim singularizou o seu livro. Transformar uma evocação dos paladinos da ciência do desespero (dismal science) - como chamam à economia política desde a época vitoriana - em mensagem de esperança no desenvolvimento, é obra! E é a primeira razão pela qual se deve ler este livro. A segunda é que o livro está acessível e é agradavel de ler, mas nem por isso resvala para a "literatura de aeroporto" (sem menosprezo pelo que se lê nas respectivas salas de espera).

Nesta breve apresentação vou falar da cultura económica e do papel dos economistas, recorrendo por vezes a exemplos próximos.

Numa era de globalização, de facto, só a proximidade da governação pode dar esperança às pessoas. Esta grande mensagem da economia é tanto mais credível quanto mais sólida a autoridade científica e moral de quem a exprime. E porque a singularidade do Nobel em economia é ser jovem e social, torna-se oportuno retirar esta mensagem de um livro que salienta a homogeneidade.

A economia ajuda-nos a compreender a falácia daqueles que, estando sempre a invocar a solidariedade, na realidade não são capazes de a praticar. Nesse processo, a economia deve escorar-se na ética e na história, e projectar-se para fora de si própria. Ao fazê-1o, traz ao homem concreto a autoverificação des expectativas. Para o homem concreto, a solidariedade deve ter resultados. Ora esse necessidade de eficiência parece desesperante e por isso mesmo a principal implicação de política que - numa homenagem a meu pai publicada em 1992 - retiro da ligação entre economia e ética é um apelo à esperança. Esta acaba sempre por ter uma expressão económica, entendida no sentido etimológico de "arrumar a casa", que é afinal, em termos de política, «pôr ordem na cidade».

Esta insinuação etimológica aponta claramente para o elemento interdisciplinar. Além disso, realça que a análise interdisciplinar, ao buscar o concreto, não deve nunca abandonar o rigor do método. Outra consequência imediata desta perspectiva é que se não pode retirar da história da análise económica qualquer ideia de que o egoísmo ou a cobiça são ingredientes essenciais de uma sociedade responsável e feliz. Pelo contrário, o postulado da selecção natural, e do incentivo próprio para a aprendizagem, insere-se num conjunto de «regras de cidadania» em que a minimização dos conflitos passa pelo respeito dos interesses legítimos dos outros. No limite, as regras do jogo de mercado não podem ser cumpridas sem honestidade e colaboração na sua execução que não desintegre o tecido social.

Se isto parece cultura em vez de economia é porque a nossa autonomia cultural depende de nós próprios enfrentarmos os desafios concretos. Enfrentar desafios abstractos que depois não se verificam ajuda a mistificar. Para distinguir os desafios uns dos outros, é preciso cultura. Não apenas a cultura tradicional mas a cultura económica. Graças ao trabalho dos economistas, a cultura económica está mais assente na tradição. Isto não tem conotações ideológicas conservadoras. Apenas o bom-senso de que o poder económico dos Estados é muitas vezes utilizado para guerras e portanto deve ser limitado pela sociedade civil. O poder de decidir, quer de guerras no sentido militar, quer de guerras monetárias, como roubar às pessoas o seu poder de compra através da desvalorização cambial sempre foi limitado na história da civilização europeia, mormente portuguesa.

Basta lembrar as Cortes: para quebrar moeda o rei tinha de ouvir uma assembleia com representantes de todo o reino, embora não tivesse de seguir a opinião das mesmas Cortes. São estas limitações que explicam a criação da moeda única. Não há dúvida que o regresso destas limitações demorou um pouco em todos os países europeus excepto na Alemanha. Contudo nos anos oitenta lá foram um a um regressando à estabilidade dos preços. Ironicamente os países mais pobres tiveram mais tempo a ilusão de que poderiam eventualmente utilizar instrumentos de política económica como a desvalorização cambial para bem da população. Ora, pelo contrário, quanto mais pequeno e pobre o país, menos ganha em desvalorizar. As mudanças que se verificaram ocorreram mais devagar nos países mais pobres, mas a cultura da estabilidade económica está de tal modo adquirida nos mercados financeiros internacionais que se contesta a sua base científica.

Esta perda da autoridade do raciocínio económico é tanto mais grave quanto é certo que economistas de absoluto primeiro plano têm ocupado posições de decisão nos Estados Unidos e nas organizações internacionais. Só que não convém emendar quando é pior a emenda que o soneto. Se o inimigo é a atitude pública à volta dos economistas, é o cepticismo que se verifica à volta do poder da ciência económica para resolver problemas, a melhor maneira de lutar contra essa atitude de cepticismo é ser mais cautelosos com aquilo que a ciência económica nos permite dizer e com o que não permite dizer.

Basta um exemplo recente, que marcou o mundo financeiro. Se depois um Prémio Nobel ou dois perdem dinheiro na bolsa (como aconteceu com Robert Merton e Myron Scholes) e os analistas financeiros acham que eles têm menos prestígio por isso, pois paciência. O valor do seu trabalho analítico é nada fica afectado, como a autora atalha logo no início e retoma na secção dedicada à crise na Long Term Capital Management (a páginas 278).

A desmistificação mais necessária refere-se não aos economistas, mas aos políticos eleitos, pelo facto de não gostarem de reformas. Isto é geral nas democracias, e depende um pouco da maneira como interagem com os empresários e com a sociedade civil que tem sido uma maneira difícil em muitos países tem que se reconhecer, não só no nosso. A tendência para o político é ser aquilo que Paul Krugman chama um vendilhão da prosperidade (do titlo do seu célebre livro de 1994). Vem aqui, fala muito bem, muitos sorrisos, muito diálogo, muitos apertos de mão, mas o certo é que a última coisa que vai fazer é uma reforma que impopular.

Este argumento acerca dos políticos eleitos já se encontra numa peça sobre a Reforma da Função Pública feita nos anos 30 por Oliveira Salazar. Aos radicais que lhe perguntavam porque é que ele não foi mais longe nessa reforma, não mudou as letras, não fez mais reclassificações, responde: "Não, não, nada disso, olhe aqueles que vão ser prejudicados vêm para a rua fazer barulho, agitam as massas. Os outros ficam calados e nem por isso apoiam o governo…". E foi de facto essa a última reforma da função pública portuguesa. Desde então houve algumas tentativas mas não surtiram efeito. Aqui está, o medo de perder uma posição numa democracia é o que leva o governante a não ousar fazer uma reforma. E é racional. Até parece aplicar-se quando não há partidos, nem eleições livres.

De modo mais geral, como ninguém sabe muito bem o que é que se faz com os impostos, quando se diz que temos que ter sectores estratégicos, todos dizem que sim. Depois pergunta-se quem é que paga, é o Senhor? Não, é ali o vizinho. Ora bem, então está aí o ponto. Não sou eu é o vizinho! Quando há fundos para gastar, sabemos muito bem que os grupos melhor organizados vão gastá-los melhor do que os consumidores em geral. Tem a ver com a proximidade do controlo sobre a despesa por oposição à receita.

Um exemplo hipotético que diz respeito à reforma espacial duma sala de aulas, baseada em não sei que descoberta da tecnologia da informação. Estou a falar e há uma altura em que decido cortar a luz e o som para uma parte do auditório, digamos o grupo que está sentado à esquerda do professor, enquanto que o grupo da direita vê e ouve à mesma. Bem, admitindo que estão interessados na exposição, o grupo da direita fica melhor do que os da esquerda, que estão no escuro e não vêem a exposição. Vai haver aplausos da direita? O mais certo é haver silêncio e eventualmente um ou outro a dormitar, como já estava antes . Mas os que deixaram de ver, vão protestar. Portanto, quem beneficia de uma reforma cala-se, não vem para a rua dizer, "que extraordinário governo temos...". Mas quem é prejudicado, queixa-se. Tem direito a indignar-se, como dizia o outro.

Conclusão política: se não queres problemas, fala de reformas, mas não as faças. Mantém-se pois um bloqueio das reformas em todas as democracias mediáticas. Fechando a luz para a esquerda, temos um problema porque berram os excluídos mas os outros não aplaudem, antes ficam em silêncio. Mas agora suponhamos que o político reformista em potência vai a Bruxelas e conta esta história a outros políticos reformistas em potência que têm exactamente a mesma experiência negativa com o seu próprio eleitorado. Se calhar eles vão dizer, olhe que o que eu fiz foi isto e há outra maneira e faça dessa maneira; pode dar para o bem e pode dar para o mal. Agora há um outro nível no qual isso se discute e isso é bom. Há mais esperança nas reformas quando há pressão dos pares, neste caso dos outros governantes comunitários. Isto não é um federalismo exacerbado (onde deixaria de haver pares), mas sim a continuação e o aprofundamento da coordenação, quer a nível europeu, quer depois a nível global com os mesmos métodos, que vai permitir à Europa contribuir apesar de tudo para reformar a arquitectura financeira internacional, como tenho proposto.

Já se lamentou o cepticismo com que políticos eleitos acolhem reformas económicas. Em épocas de crises financeiras internacionais, ouve-se mais o que dizem os economistas porque paradoxalmente se pensa que eles têm menor capacidade de afectar as decisões. O economista não deve cair na tentação de aparecer como bombeiro das reformas ou das mudanças sociais. O papel do economista, com base na ciência que conhece, é realmente o de mostrar os efeitos das soluções alternativas. Por exemplo, se por acaso Portugal tivesse restringido os movimentos de capitais em vez de restaurar a convertibilidade plena de escudo em fins de 1992, cinco anos antes do prazo limite acordado com Bruxelas, que teria acontecido? E se por acaso Portugal dissesse que a banca é um sector estratégico tal como os seguros e mais este e mais aquele, não vão ser as gerações futuras a pagar? Vão. E saberíamos quantificar isso? Ou quando se consegue quantificar ou quando não se consegue quantificar? Aí há consensos contra economistas profissionais e isso pode ajudar cada um dos cidadãos a tomar posições. Nunca vai ser simples. Agora fechar as economias umas sobre as outras é certamente uma resposta perversa à globalização, porquanto a única resposta válida é a reforma nacional, regional ou memso global da governação.

Como economista interessado pela história da nossa cultura económica e dos mitos monetários a ela associados, tenho sugerido tornar a globalizalização empresarial um projecto mobilizador para os portugueses, na medida em que reflecte estratégias empresarias compatíveis com as pertenças dos cidadãos, servindo por isso para prosseguir o bem comum dos portugueses. Parece cultural, e é, mas (não me canso de o repetir) a cultura não é inimiga da economia, antes pelo contrário. Isso é particularmente verdade em matéria de globalização - pessoal e empresarial. Acontece que a nossa administração pública ainda se rege pela reforma que os radicais dos anos trinta achavam tímida! Por outras palavras, a governação pública (e o mesmo se poderia dizer da maioria das empresas portuguesas) não se adaptou ainda às necessidades da globalização, em parte porque o desenho institucional é também aí inadequado. Ora sem boa governação pública e privado, não pode haver interação positiva com a globalização. Esta linha de investigação, que tenho prosseguido no Centro de Desenvolvimento da OCDE desde 1999, está disponível em http://prof.fe.unl.pt/~jbmacedo.

Haveria decerto outras maneiras de prefaciar, recorrendo a outras relações mais ou menos próximas. Poderia relembrar os meus tempos de aluno de Tjalling Koopmans no início dos anos setenta, de co-autor de James Tobin no fim da década e de vizinho de Arthur Lewis no início dos anos oitenta.

Poderia citar os artigos sobre o assunto que escrevi nos primeiros anos da revista Economia da Universidade Católica Portuguesa (incluíndo "Os Prémios Nobel em Economia" em Janeiro de 1977, no qual mencionava Tinbergen, Frisch, Samuelson, Kuznets, Arrow, Hicks, Leontief, Hayek, Myrdal, Koopmans, Kantorovich e Friedman, "Herbert Simon: O 'Homo Interdisciplinaris'" em Outubro de 1978, "Prémio Nobel do Desenvolvimento ou Desenvolvimento do Prémio Nobel" em Outubro de 1979, no qual mencionava Schultz e Lewis, "Prémio Nobel: A Segunda Geração" em Outubro de 1980, dedicado a Klein, e "Tobin: Prémio Nobel" em Outubro 1982, com Manuel Barbosa e Rui Coutinho).

Valendo-me da internet (http://www.nobelprizes.com) poderia acrescentar os laureados de 2000, James Heckman de Chicago e Daniel McFadden de Berkeley, pioneiros na teoria e métodos de análise respectivamente da selecção de amostras e de dados discretos, levando para 46 o número total de premiados, entre os quais 29 vivos.

Poderia ainda relatar episódios de convívio profissional ou pessoal que me marcaram, como o doutoramento honoris causa de Paul Samuelson pela Universidade Nova de Lisboa, a longa conversa com Wassily Leontief nos trinta anos de casados dos Galbraith em Cambridge, o jantar com Theodore Schultz, Douglas North e Robert Lucas em casa dos Harberger em Chicago, o seminário alpino em que conheci James Buchanan, o feroz ataque ao euro de Franco Modigliani num seminário ibérico em Harvard, a 2a ABCDE em Paris onde revi Amartya Sen depois do prémio de 1998, a alegria dos sucessivos encontros com Robert Mundell, ultimamente com a sua jovem familia em Dubrovnik depois do prémio de 1999, os passeios com Kenneth Arrow no Vaticano a discutir os temas de ética recordados no início, etc.

Nenhum destes vários projectos alternativos levei a cabo. Podiam distrair a atenção do projecto subjacente a este livro. Projecto, que partilho, de salientar a dimensão humana dos economistas para chegar a dimensão social da economia. Se há outros modos de defender a cultura económica e sa sua comunicação social (os artigos de Paul Krugman no Slate - intitulados precisamente The Dismal Science), o que Marilu Hurt McCarty usa neste livro tem profundidade e extensão. Junta a investigação aturada da obra a tantos episódios de convívio pessoal e profissional que é como se deixasse falar os Nobel. Ouçamos pois.

Paris, 19 de Maio de 2001