Nota prévia: Uma versão anterior foi apresentado na sessão de economia do congresso Brasil-Portugal ano 2000, realizada no palácio do Itamaraty em Brasília, 23 de Setembro de 1999, em comentário a Daniel Bessa. O texto recorre a resultados de um projecto de investigação do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), intitulado Memórias comuns: dos circuitos esclavagistas às comunidades lusófonas.
1. Introdução
Para abordar as relações luso-brasileirasno contexto de globalização financeira em que vivemos, parto da combinação das pertenças europeia e lusófona dos portugueses (a que chamaremos P), bem como dos seus direitos, liberdades e garantias, incluindo a moeda estável e convertível (ao conjunto dos quais chamaremos L). Juntos P e L determinam o bem comum. Do bem comum resultam princípios de bom governo (denotados por G). P e L estão a montante de G. A juzante estão os princípios de bom governo que configuram a ideia portuguesa da Europa: proximidade do cidadão, legitimidade nacional e accountability ou responsabilização democrática (na minha contribuição na Homenagem ao Professor João Lumbrales, no prelo, intitulada Liberdades Futuras dos Portugueses, e em trabalhos parlamentares aí citados, estes princípios correspondem à sigla PLA).
Avento que os portugueses viveram metade dos últimos duzentos anos em ciclos virtuosos de PLG; dividindo a amostra com a proclamação da República em 1910, os ciclos virtuosos subsequentes diminuem para um quarto e os anteriores aumentam para três quartos do tempo. Embora sem poder medir os ciclos brasileiros, creio que resulta da própria abordagem uma forma de superar as tradicionais insuficiências das relações económicas bilaterais luso-brasileiras. Chamo bimultilateralismo a essa superação, porquanto escora as relações bilaterais nas pertenças múltiplas das duas partes. Pertenças assentes, desde logo, nas relações com o Mercosul e o continente americano como um todo para o Brasil e com a UE e a área euro-afro-mediterranica para Portugal. Tendencialmente comum é a pertença lusófona, partilhando largos trechos de memórias de cinco séculos que aqui comemoramos.
Enunciando esta abordagem quando se comemoravam na Academia das Ciências de Lisboa os oitocentos anos da Bula Manifestis probatum de 23 de Maio de 1179, disse Jorge Borges de Macedo: "A história de Portugal prova bem que os portugueses, entre outras características de persistência e trabalho, sempre tiveram a capacidade, que a bula papal reconheceu, de usar a independência política em defesa do bem comum." (Constantes da História Portuguesa, in Portugal: Um estado de direito com oitocentos anos, Lisboa, 1981, p. 45). Vinte anos depois, com a entrada do escudo no euro, os benefícios da liberdade financeira começaram a chegar ao cidadão, reforçando a pertença europeia - sem contudo assegurar nem o bem comum nem o bom governo. Aliás, só depois da alternância política verificada em fins de 1995 é que a opinião pública apreendeu a mudança de regime em direcção à estabilidade e convertibilidade cambiais ocorrida três anos antes.
A história monetária portuguesa regista outros episódios em que se verificaram simultaneamente as liberdade política e financeira dos cidadãos. Como nenhum ocorreu neste século, podem considerar-se esquecidos. Não sem lamentar o esquecimento, como já fiz na minha primeira comunicação à Academia das Ciências de Lisboa, que intitulei "Do real ao euro, passando pelo escudo" (ver o meu [1998], em co-autoria com Álvaro Ferreira da Silva e Rita Martins de Sousa), demonstro na secção seguinte a relação do PLG com a hierarquia financeira internacional. Na secção 3, menciono as pertenças dos povos lusófonos, membros desde 1996 da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Na secção 4, descrevo os ciclos virtuosos e viciosos em Portugal desde 1797 e suas consequências económicas, financeiras e políticas. Concluo na secção 5: desde que se consiga o PLG nos países lusófonos, ressalta a vantagem do bimultilateralismo para os membros da CPLP. Mais, a amostra portuguesa sugere a irrelevância do regime político e das ambições redistributivas das revoluções e dos governo, ao contrário dos mitos "republicanos, laicos e socialistas" (RLS) prevalecentes em Portugal. Uma análise do PLG do lado brasileiro, de cada um dos cinco países afro-lusófonos, e de Timor está para além do âmbito deste escrito. Sem embargo das memórias comuns, só uma análise de cada caso específico permitirá um diagnóstico.
2. Economia Global
Com a globalização, "pôr ordem na cidade" (a etimologia de economia política) torna-se uma exigência incontornável dos mercados financeiros internacionais. Ordem explicitada pelos cultores do constitucionalismo económico e das expectativas, as mais das vezes em luta contra as consequências despesistas do arbítrio orçamental, que responsabilizam pelo aumento de impostos e da inflação. As violentas oscilações do crescimento económico nas economias em desenvolvimento, também chamadas emergentes, terão a mesma fonte. O processo orçamental, o funcionamento das instituições monetárias e a própria constituição fiscal passam assim a ser objecto de análise macroeconómica.
Mas macro não é uma questão de escala. O facto das vendas das grandes empresas multinacionais ultrapassarem em muito o PIB da maior parte dos países, não impede que se refira ao estudo destas como "microeconomia" e se presuma que se trata de problemas de algum modo mais virados para as pessoas, consumidores, fornecedores, trabalhadores, accionistas, gestores, etc. Alimentar o preconceito da escala sobre-humana da macro (por oposição à etimologia) pode, todavia, ser "políticamente oportuno".
A imprensa, essencial para a divulgação dos comportamentos de massas que justificam falar de agregados económicos, nacionais, continentais ou mesmo mundiais, também tem o efeito perverso de afastar a macroeconomia das pessoas, dando-lhes uma noção de impotência perante poderes ocultos e decerto conspirativos. Paradoxalmente, pode contribuir para este afastamento do cidadão o facto das grandes orientações da política económica serem objecto de supervisão, ou pelo menos de coordenação, multilateral entre os responsáveis pelas grandes potências democráticas, numa versão mitigada do que algumas dessas mesmas potências praticam na eurozona. É assim que os jornalistas económicos conseguem ser inimigos dos economistas profissionais, considerados ininteligíveis e demasiado "macro", embora este preconceito raramente poupa a "micro". Quem ataca os macroeconomistas está na verdade a contestar a ciência económica.
Esquecendo as suas raízes éticas de procura do bem comum, os críticos da macroeconomia costumam dar a entender que se trata antes de doutrinas ao serviço de interesses. Interesses que na imprensa costumam ser estrangeiros e esconder-se por trás de instituições distantes, como o FMI, a Comissão Europeia, a OCDE, a Organização Mundial do Comércio (OMC), ou agrupamentos informais como o G-7 (cujos membros são Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido; mais informação em http://www.library.utoronto.ca/g7/g20/ O G-7 uma influência decisiva nas principais instituições financeiras internacionais, até por espartilharem a UE). Interesses que na realidade são nacionais e estão instalados à sombra de políticas de protecção comercial ou financeira, cuja mudança tudo fazem por evitar ou pelo menos adiar. Só que esses interesses escondem-se atrás de mitos, como aquele que sustenta que a globalização "serve apenas os ricos (do G-7)" ?
Certo que as pessoas não têm ideia daquilo que permite uns países crescerem mais do que outros. E menos ainda conseguem perceber porque é que uns países são vítimas de crises financeiras que, em poucos dias, eliminam anos de progresso económico e social, ao passo que outros países escapam a essas crises. Por isso mesmo, as pessoas estão singularmente vulneráveis a ideias bem sonantes que, usando os conhecimentos sobre consumidores, trabalhadores e empresas, que já possuem, possam racionalizar o meio económico ambiente – que é a economia global. O fracasso da "ronda do milénio" promovida pela OMC em Seattle mostra que se deve melhorar a pedagogia da "ordem na cidade (global)". Acontece que essa pedagogia ultrapassa os economistas, as empresas e os mercados, porquanto envolvem uma sociedade civil internacional emergente que questiona a hierarquia financeira existente.
A globalização resulta das decisões descentralizadas de empresas em todo o mundo, mas tem uma hierarquia que combine as lições, mais ou menos assimiladas, da história e da geografia. A novidade relativamente a uma análise puramente nacional das pertenças e liberdades é que esta hierarquia adquire maior relevância durante as crises financeiras internacionais, parecendo perdê-la em tempos de grande apetite pelo risco por parte de investidores internacionais. Assim, por um lado, a hierarquia segue a reputação financeira e a eficácia da luta contra a corrupção, mas por outro, as perspectivas positivas ou negativas para uma e outra ajudam a determinar o padrão de contágio nas crises.
Este padrão de contágio não ignora as trocas comerciais, as quais, por seu turno, podem ser função da proximidade geográfica (medida através dos chamados modelos gravitacionais). Mas também reconhece o papel das hegemonias. Estas podem deteriorar as perspectivas de nações isoladas ou incluídas numa hegemonia regional fraca relativamente a nações incluídas numa hegemonia forte. Foi, assim, notória a diferença entre a resposta das economias asiáticas, em que a situação negativa do Japão funcionou como agravamento, e das latino-americanas, em que a situação positiva dos EU funcionou como melhoria. Já é menos evidente o papel da UE. quer no que se refere ao Leste europeu e à Rússia, quer no que se refere a África, especialmente à África do Sul, quer no que se refere ao Médio Oriente. Por isso a indiscutível hierarquia entre mercados desenvolvidos e emergentes deve ser entendida em termos hábeis.
De qualquer modo, as democracias mais avançadas da OCDE, com notações creditícias e índices de transparência máximos encontram-se no topo da hierarquia financeira. Abaixo figuram várias periferias, com notações e índices que se vão afastando dos melhores padrões para chegar a valores muito medíocres em África, na ex-URSS e noutras partes da Ásia. Ai o investimento internacional só penetra para extrair matérias-primas ou explorar baixos salários, desprezam-se princípios de bom governo e a corrupção impera.
Às vezes salta-se na hierarquia. Tais "saltos de rã" resultam de políticas económicas e sociais sustentáveis e sustentadas. Assim os "tigres asiáticos" ultrapassaram muitos países fundadores da OCDE, entre os quais Portugal, em rendimento médio, graças a elevadas taxas de crescimento do PIB registadas durante décadas sucessivas. Mesmo tendo em conta que a crise financeira fez regressar a pobreza aos "tigres", estas economias continuam avançadas e com forte capacidade de ajustamento num horizonte de alguns anos. Acontece, contudo, que as políticas económicas seguidas ao longo de décadas privilegiaram o crescimento do PIB em detrimento da coesão social e da ética empresarial, o que agravou os efeitos da recente crise.
Isso pode ocorrer em qualquer país que abandone a defesa dos direitos de propriedade. Qualquer economia que se veja duradouramente isolada dos mercados internacionais há-de crescer mais devagar do que economias nacionais onde se protegem os direitos de propriedade e de livre iniciativa (em contraste com os interesses instalados), onde os impostos são moderados e onde floresce o comércio internacional em bens, serviços e activos financeiros. Esta ideia é por vezes considerada como reflectindo o Estado minimalista, ou o Estado-polícia, em vez do Estado-solidário. Despida de conotações ideológicas, que lembram os excessos marxizantes, a tese "minimalista" pode ser comprovada empiricamente através da comparação das taxas de crescimento entre os dois tipos de economia. Num horizonte de décadas, conclui-se a favor da convergência das economias abertas em que se respeitam os direitos de propriedade e a ética empresarial (valores sociais e tribunais que funcionam). Estes resultados são de Jeff Sachs e Andy Warner [1995], que excepcionam o caso chinês.
Pelo contrário, ameaçando o direito de propriedade com impostos presentes ou futuros elevados, ou protegendo as empresas nacionais da concorrência internacional, os governos podem ganhar eleições mas violam o contrato social em desfavor das gerações futuras. Essa violação dos princípios de bom governo reduz o potencial de crescimento económico, a competitividade das empresas e a criação de emprego, tanto mais quanto mais instáveis os mercados financeiros internacionais. A divergência dessas economias relativamente ao padrão dos países mais avançados agrava-se quando há turbulência nos mercados. Porque em períodos de calma, qualquer nação, região, cidade ou empresa consegue obter crédito, por vezes até em excesso. Surge uma crise financeira, a hierarquia reafirma-se, invertem-se "saltos de rã" passados e sofrem as populações. Um baixo risco de crédito é uma garantia para os nossos filhos. As liberdades futuras exigem uma política orçamental sustentável. Esse juízo de sustentabilidade, feito no presente, traduz-se em maior ou menor credibilidade nacional, e numa maior ou menor participação das empresas nacionais na economia global.
Pode criticar-se a indiferença da eurozona frente à globalização mas é certo que as mudanças na hierarquia financeira afectam sobretudo as principais economias emergentes. Embora não haja uma lista única, os membros do recém-criado G-20 servem bem para mostrar os novos centros da geografia financeira: África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, China, Coreia, Índia, Indonésia, México, Rússia, Turquia. Vêm-se oito membros da OCDE (ou do respectivo Centro de Desenvolvimento), a Rússia (que já faz parte do G-7, rebaptizado G-8) e mais três gigantes populacionais asiáticos, além de potências africana e do golfo. O G-20 reuniu pela primeira vez ao nível de ministros das finanças e governadores de bancos centraisem Berlim em fins de 1999, numa reflexão que tentava ultrapassar o âmbito demasiadamente restrito do G-7. Participam plenamente nas discussões do G-20 o director do FMI e o presidente do Banco Mundial.
3. Quantas pertenças lusófonas?
Que tem o Brasil do G-20 com a lusofonia? Não se sabe bem, até porque as pertenças não são fáceis de medir. Entendem-se como as próprias raízes sociais e económicas da política pública ao nível local, nacional e internacional, não como meras opções de política externa. Em vez da tradicional antinomia entre a vocação continental e a marítima, as pertenças nas quais assenta o bem comum dos portugueses são complementares. Elas articulam-se entre si tanto mais facilmente quanto mais credívelmente forem expressos os interesses nacionais.Credibilidade que vai das pertenças presentes às liberdades futuras, que garante. Credibilidade que exige uma participação duradoura na globalização da actividade económica e financeira.
Para os portugueses, a pertença lusófona dá voz a uma herança comum com o Brasil e cinco países africanos. A pertença lusófona não coincide com regimes políticos, tendo-se firmado apesar da guerra colonial na medida em que o esforço de fomento foi acompanhado de uma sensibilidade política mútua que a descolonização não eliminou. Os mercados dos países africanos lusófonos absorviam pouco mais de 3% das exportações portuguesas em 1990, quando em 1973 a quota era cinco vezes maior. Contudo, a lusofonia tornou-se uma pertença presente entre Portugal e as suas antigas colónias.
Pelo sangue, pela língua, pela cultura ou pela procura de um futuro comum, a pertença lusófona tem-se escorado nas comunidades portuguesas e de lusodescendentes de Franca, Alemanha, Suíça, Brasil, EU, Venezuela, África do Sul, Austrália e outras ainda dispersas por regiões administrativas da China, como Macau e Hong-Kong. Entregue Macau e assegurada a independência de Timor, desapareceram durante o ano de 1999 os últimos reflexos políticos do "império". O que poderá vir a restituir a lusofonia à sociedade civil. Vão no mesmo sentido as conclusões do 1.° Congresso das Comunidades Lusófonas, A Lusofonia na era da informação, realizado noPorto em Junho 1998, parcialmente publicadas em GEPOLIS Revista de Filosofia e Cidadania, Inverno 1999, pp.143-180 (mais informações sobre a actividade da comissão organizadora em prof.fe.unl.pt/~jbmacedo/pt/lusofonia.htm).
Restituição à sociedade civil que está a ocorrer nos países de acolhimento dos emigrantes portugueses graças à permanência das comunidades e que tem vindo a constituir um factor político de formação de grupos de pressão e de decisores interessados em Portugal. Estas comunidades podem ainda influenciar a internacionalização das empresas portuguesas, que está a dar os primeiros passos - designadamente para o Brasil. O bem comum presente e futuro dos portugueses pode pois ser ameaçado pelos efeitos da crise financeira internacional. Basta, por exemplo, que a economia brasileira não consiga completar o ajustamento acordado com o FMI mesmo depois de abandonada a política de estabilidade cambial em Janeiro de 1999. Como se sabe, a recuperação notável da confiança no real não eliminou os receios de que o ajustamento orçamental se revela insuficiente.
Tanto mais que o Brasil detém um peso esmagador entre os parceiros da CPLP, do ponto de vista demográfico, territorial e económico. A integração nas comunidades lusófonas permite ao Brasil adquirir uma pertença universalista para além do continente americano e apresentar-se como "mediador de sensibilidades" europeias e africanas. Pertence a organizações que possuem agendas próprias nas vertentes da concertação política, da integração económica, da preservação ecológica, etc. como a Organização dos Estados Americanos, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, o Grupo do Rio, a Conferência Ibero-Americana e a Mercosul.
Os sucessivos governos portugueses têm dado relevo às relações com o Brasil, visando concretizar e desenvolver as orientações contidas no Acordo Geral de Cooperação Política, Económica e Cultural, assinado em Brasília em 1991 e, simultaneamente, valorizar no quadro comunitário a relação da UE com o Brasil e com o Mercosul. Estes objectivos são compreensíveis dado o impacto político da relação em causa, nomeadamente no contexto dos fluxos migratórios e questões associadas, que ontem se referiam aos emigrantes portugueses no Brasil e hoje se concentram no movimento em sentido contrário - num momento em que obrigações europeias começam a ter implicações na política nacional de emissão de vistos e de imigração.
O relacionamento da UE com a América Latina concretiza-se em acordos bilaterais e multilaterais de cooperação económica e comercial, não preferenciais, e em diálogo político. O Brasil conta com um acordo bilateral de cooperação que, ultrapassadas as dificuldades criadas pela tradicional política de substituição das importações, tem possibilidades de desenvolvimento, principalmente se a iniciativa de integração do Mercosul se desenvolver. Como a UE tende a dar preferência aos relacionamentos multilaterais, a aposta no bi-multilateralismo torna-se essencial para sustentar as relações comerciais e financeiras bilaterais.
A mais-valia dos países afro-lusófonos - Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe - consiste no seu número e potencialidades económicas e nas relações privilegiadas com as potências regionais africanas das áreas em que se encontram inseridos. Com a transição para a democracia nesses países surgem condições para a consolidação de sociedades politicamente organizadas, segundo um conceito de autodeterminação. A pertença à Organização da Unidade Africana e a outras organizações regionais projecta estes países para além do espaço local. Contudo a coesão nacional tem sido ameaçada quer nos grandes territórios quer nos micro-Estados.
Portugal participou activamente no esforço de mediação para a paz em Angola, incluíndo todo o processo de desmobilização e de preparação das eleições, no período que procedeu o reacender da guerra civil em 1992. Não teve contudo a sequência esperada no apoio à reorganização das forças armadas nacionais angolanas, à estruturação do sistema democrático e à participação no relançamento económico do país. Portugal continua actualmente a acompanhar os esforços para o restabelecimento da paz, mas sem perspectivas de sucesso a curto prazo.
A participação portuguesa no processo moçambicano, partilhada com a Itália, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a África do Sul, embora muito mais modesta no período de mediação, foi a única a ter uma dimensão bilateral explícita, derivada da pertença lusófona. Concretizou-se pela presença nas comissões instruídas pelos acordos de paz e pelo apoio ao processo eleitoral, em modos por vezes inovadores, como o que implicou a criação de um fundo para a promoção da democracia pluripartidária e de esquemas para assegurar o pagamento de salários aos militares desmobilizados (incluíndo a compra das suas armas), por forma a facilitar a sua integração na vida civil. Também é de registar o apoio português a projectos económicos para a recuperação do país, nomeadamente a recuperação da barragem de Cahora Bassa.
Ao aderir ao Commonwealth em 1995, Moçambique tornou-se o primeiro membro lusófono dessa organização, o que revela bem que a multiplicidade de pertenças não é um exclusivo dos países desenvolvidos como Portugal, antes se aplica mais ou menos a todos os países. No caso de Moçambique, além disso, a percepção de que o ajustamento estrutural acordado com o FMI e o Banco Mundial funcionou está a atraír investimento estrangeiro, e especialmente português. Tal como Angola, Moçambique pertence à Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), inicialmente feita contra a África do Sul e que agora a incluí como parceiro dominante.
Depois de desenvolver um esforço de apoio ao muito tímido processo de democratização da Guiné Bissau, Portugal teve de enfrentar a guerra civil do Verão de 1998. Desta tragédia humana poderá eventualmente nascer uma identidade guineense susceptível de superar a tentação da francofonia. Sem a violência que vitimou a Guiné Bissau, pode pensar-se o mesmo efeito para as ultimas eleições em S. Tomé e Príncipe. As relações com Cabo Verde prosseguem na normalidade, até por ser daí originária a mais importante comunidade de imigrantes em Portugal, concentrada essencialmente na região de Lisboa. Mesmo assim, as condições de integração dos caboverdianos poderiam melhorar se houvesse cuidado no relacionamento sócio-cultural entre os dois países.
Portugal tem intensificado o esforço junto aos organismos multilaterais, e principalmente na UE no quadro dos Acordos de Lomé, para um apoio ao desenvolvimento económico, para a estabilização democrática e livre iniciativa nos Cinco. Este esforço é compatível com a abordagem bimultilateral aqui defendida, embora os seus resultados não estejam à vista. Pode dizer-se que a "ilusão física" que imperava nas economias da órbita soviética e que as impediu de se desenvolverem financeiramente ainda afecta a governação desses países. O hábito de ignorar os fluxos financeiros relativamente aos comerciais, normalmente estimados através da distancia relativamente a um ponto de gravidade, também se observa nas tentativas de prever os padrões de contágio das crises financeiras, como se disse na secção anterior.
O reforço do relacionamento e da cooperação numa base bilateral pode também potenciar as estruturas existentes de cooperação multilateral e as diversas áreas prioritárias de cooperação. As pressões da sociedade civil e da administração publica tendem a pulverizar as iniciativas de cooperação portuguesas tornando os programas pouco mais do que listas de boas intenções. O juízo das agencias internacionais responsáveis, como o Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da OCDE, e de associações para a cooperação empresarial como a ELO (membro do grupo europeu de associações empresariais pare o desenvolvimento e a cooperação com sede em Bruxelas conhecido como grupo dos sete), tem sido severo, pondo em duvida a credibilidade do aparelho português de cooperação. Dai resulta uma ameaça à pertença lusófona tanto maior quanto mais dependente estiver de esforços bilaterais de cooperação.
4. Ciclos portugueses desde 1797
Considerar a estabilidade financeira um privilégio de banqueiros tem tradições em Portugal, e alimenta crises recorrentes desde que a declaração da inconvertibilidade do real em ouro, em 1797, retirou a liberdade financeira aos portugueses e as invasões francesas, sob pretexto de introduzir a liberdade política ameaçaram as pertenças dos cidadãos. Surgiram assim mitos que se afirmaram com nova declaração de inconvertibilidade do real em 1891 - atravessando todo o século para chegar aos nossos dias. Não admira que se chamem RLS aos mitos que divorciam a liberdade política da financeira. São responsáveis pelo esquecimento a que estão votados os episódios de bom governo anteriores.
Em "Europa e lusofonia, política e financeira: uma interpretação", que dediquei a Manuel Jacinto Nunes, identifiquei fases resultantes da combinação do critério das pertenças e das liberdades, como indício de bom governo, a que acima chamei PLG. A duração de cada uma das quatro combinações possíveis de pertenças e liberdades está calculada no quadro 1. A combinação virtuosa de liberdades política e financeira e pertenças europeia e lusófona, tal como a combinação viciosa da restrição política e financeira e da ambiguidade europeia e lusófona duram mais de um terço do tempo cada uma. A combinação de pertenças sem liberdades dura quase um quarto do tempo. O resto, cerca de 5%, pode caracterizar-se como liberdades sem pertenças, na medida em que resta uma ambiguidade lusófona na governação para além da pertença ainda ser frágil na sociedade civil.
No que toca ao século dezanove, considera-se que também se pode descrever o período entre a saída da Corte para o Brasil e a independência do território em 1824 como de pertenças sem liberdades. Pelo contrário o período 1797-1807 é de ausência de pertenças e liberdades. Contrariando os mitos RLS, considerei ciclos virtuosos não só o período do padrão-ouro mas também o subsequente à saída até à República. O período em que se tentou combinar a EFTA com a guerra colonial também é considerado virtuoso. Pelo contrário, a liberdade política após o 5 de Outubro e após o 25 de Abril acompanhou a dupla ambiguidade até ao Acto Colonial e a restrição financeira até à revisão constitucional de 1989. Só depois desta se teriam voltado a verificar todos os ingredientes da combinação virtuosa, tal como aconteceu entre 1885 e 1891. Já o ciclo de 1932-60 é de pertenças sem liberdades, vicioso portanto.
A abordagem do quadro 1 vai contra os mitos RLS e, por maioria de razão, vai contra quem, postulando a inexistência de PLG em Portugal, resume o século assim: "O liberalismo indígena estava moribundo.(...)Em Lisboa e um pouco na província, os republicanos combatiam este irreformável regime." Depois da "jacobina balbúrdia" e de Salazar, "as coisas melhoraram (fora o PREC) e pela primeira vez pudemos votar como queríamos. Mas ficámos sob a tutela dos militares até 1982 e obrigados a respeitar uma Constituição absurda até 1989. Éramos finalmente donos de nós próprios? Não éramos. Em 1991 e 1993, o dr. Cavaco, sem um referendo, sem quase uma palavra, transferiu para Bruxelas a incrível maçada de nos pôr na ordem: e nós, como sempre, engolimos submissamente esse novo patrão." (Vasco Pulido Valente, Uma história triste, Diário de Notícias, 26 de Dezembro de 1999). Está bem datada a restauração da credibilidade externa (programa de convergência em 1991 e upgrading da dívida externa em 1993), mas são equiparados a "submissão" os efeitos da liberdade financeira para empresas e famílias!
QUADRO 1
COMBINAÇÕES DE PERTENÇAS
E LIBERDADES - SUA DURAÇÃO (1797-2000)
PERTENÇAS SIM | PERTENÇAS NÃO | % (ANOS) | |
LIBERDADES SIM | 1855-1910
1961-76 35 (N=72) |
1989-2000
6 (N=12) |
CICLOS VIRTUOSOS
41 (84) |
LIBERDADES NÃO | 1808-24
1932-60 23 (N=46) |
1797-1807
1825-54 1911-31 1977-88 36 (N=74) |
CICLOS
VICIOSOS
59 (120) |
% (ANOS) | 58 (118) | 42 (86) | 100 (204) |
O ciclo virtuoso desde a revisão constitucional não implica que exista bom governo ao longo de toda a década de noventa. Houve L graças aos alicerces de credibilidade necessários para um ciclo virtuoso na economia global, mas não houve P por causa da ambiguidade lusófona, primeiro por causa da ausência de consagração institucional. Com a criação da CPLP em 1996, pouco se avançou, é certo, mas não parece curial ignorar a lusofonia como pertença presente. Há que reconhecer, por outro lado, que, mau grado quatro revoluções redistributivas (1910, 1917, 1926, 1974), se manteve ao longo do século uma "constituição fiscal" informal discriminatória contra o trabalho e capital privado desinserido das grandes colecções de interesses capazes de manipular a receita e despesa pública. Por outras palavras, têm-se mantido demasiado estáveis entre nós as instituições de absorção de recursos e de concessões desses recursos. Esta discriminação revela os limites da pressão externa perante a voracidade descoordenada dos grupos sociais interessados em partilhar entre si a base fiscal, que os leva a exagerar a pressão fiscal e o convite à evasão. Além de divulgada numa entrevista à Focus de 20 de Dezembro de 1999 (p.110 ss), a abordagem vem desenvolvida em Portugal’s European Integration: the limits of external pressure, apresentado na conferência Portugal: Strategic Options in a European Context, realizada em Harvard, 20 de Novembro de 1999; ver ainda Aaron Tornell e Philip Lane [1999].
Mesmo que atenuada, a pressão externa ajudou a sustentar o ciclo virtuoso em curso, pelo menos no que toca à pertença europeia. Mas esta nem sempre existiu de forma positiva na nossa história, havendo pelo contrário casos em que ela tolheu a liberdade política, financeira ou uma e outra. Tais ocorrências não coincidem contudo com regimes políticos. Assim, ao isolamento escolhido durante a grande depressão dos anos 1930, seguiu-se depois da guerra uma participação activa (posto que cautelosa) na integração comercial europeia e mundial. Em 1960, levou-nos para a EFTA e o GATT (actual OMC), em 1972 para a associação à CEE (actual UE) e em 1977 para o pedido de adesão. Logo depois da associação, mudara o mundo com a crise do petróleo e muda Portugal com uma restauração da democracia que contudo ignorou a mudança mundial.
Em 1998/89, os portugueses, anestesiados pelo euro, ignoraram a crise financeira internacional ou atribuíram-na aos outros. Fizeram mal, porquanto a consagração da economia portuguesa no mercado global só ocorrerá quando as empresas aqui sediadas se começarem a reorganizar para o efeito, respondendo ao que as empresas sediadas noutros países tem levado a cabo nos últimos anos, muitas vezes através de fusões internacionais. Entretanto, as previsões de crescimento económico na eurozona melhoraram. Inverteu-se a baixa das taxas de juro, iniciada pelos bancos centrais americano e inglês em Setembro e seguida pelo europeu uns meses mais tarde. Revela-se a lentidão relativa do processo de coordenação da política monetária única no Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), o que leva a lamentar que não haja mais interesse em melhorar os processos de supervisão multilateral no domínio monetário e orçamental. A eurozona pode ter a fama da estabilidade e não ter o proveito.
De qualquer modo, não chega estabilizar a economia nacional num ambiente em que cada um dos principais partidos políticos portugueses alternadamente se reclama da estabilidade e da segurança, considerando o outro portador de instabilidade e insegurança. Poderia dizer-se que todos querem a "sua" estabilidade - que associam a flexibilidade - e rejeitam a estabilidade dos outros que julgam antes rigidez. O aproveitamento pelo PS da estabilidade governativa e financeira defendida pelo PSD não é mais do que uma ilustração gritante deste rotativismo exacerbado. Como, dentro da estabilidade, o eleitorado parece querer mudança, os lideres partidários prometem reformas, sem querer ou poder depois executá-las. Este paradoxo do reformismo é típico das democracias avançadas, especialmente europeias: como as políticas propostas, desgarradas do ciclo vital, não são credíveis, as estruturas que prevalecem nos mercados de trabalho e capitais mantêm-se rígidas demais, como escrevo na minha contribuição de homenagem a João Lumbrales citada acima (e num trabalho sobre contas geracionais em Portugal aí resumido, publicado num volume do NBER onde aliás se encontram também contas geracionais para o Brasil.
QUADRO 2
CICLOS VIRTUOSOS E VICIOSOS (1834-1995)
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C. VIRTUOSOS |
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C. VICIOSOS |
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MÉDIA |
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C. VIRTUOSOS |
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C. VICIOSOS |
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TOTAL |
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Voltando aos ciclos virtuosos e viciosos, o quadro 2 mostra no primeiro painel a diferença entre uns e outros desde a convenção de Évoramonte, relativamente ao qual existem dados sistemáticos. Nos ciclos virtuosos não há necessariamente bom governo, embora a duração dos governos seja em média 18 em vez de 11 meses. Quanto à inflação, pelo contrário, é sempre superior à média europeia (usando os deflatores do PIB dos actuais membros da com pesos de 1970) embora nos ciclos viciosos chegue a atingir valores muito mais altos.
O panorama do crescimento é semelhante: convergência a uma taxa de 0,8% ao ano em ciclos virtuosos em vez de divergência a uma taxa de -0,6% ao ano, sendo a média de apenas 0,1% ao ano. No segundo painel, mostra-se a diferente duração dos ciclos, que aliás se dividem por igual (1ª coluna). Nas duas outras colunas, vê-se que regista-se a distribuição passa a ser de três quartos e um quarto, só que de sentido inverso, consoante se viva em regime monárquico ou republicano. Este cálculo visa lembrar a irrelevância do regime político para o PLG, não a substituição de mitos RLS por outros, de sentido inverso.
7. Conclusão
A globalização da actividade económica e das comunicações aconselha os portugueses, com bom governo, a procurar o seu bem comum combinando tanto as pertenças quanto as liberdades, ao que se chamou PLG. A globalização desaconselha os portugueses a embarcar em mitos RLS, que postulam a existência - ou a inexistência - de bom governo em função do regime político. Resulta uma perspectiva sobre a globalização que se ajusta ao padrão de observância de princípios de bom governo exigidos pela hierarquia financeira internacional. Serve assim de base a um relacionamento económico e financeiro mais durável entre Portugal e Brasil do que perspectivas puramente comerciais, mau grado o recente surto de investimento português no Brasil.
A abordagem aqui proposta pretende salientar a naturalidade do bimultilateralismo nas relações luso-brasileiras, o que não exclui que se trate de uma novidade para países que neste século se alhearam dos movimentos de integração económica internacional até há poucas décadas. Esta abordagem não só não tem tradições nas diplomacias dos dois países, mas também não é usual nas respectivas empresas multinacionais. Em suma, embora o bimultilateralismo não tenha sido tão praticado quanto seria de esperar, resulta do maior interesse para Portugal promovê-lo.
Deve-se contudo ponderar as suas vantagens concretas para o Brasil, o que não foi feito neste escrito. Alguns exemplos na esfera monetária, financeira e do desenvolvimento se poderiam dar, mas nunca seriam suficientes para substituir uma análise das pertenças e liberdades dos brasileiros. Atente-se contudo que a iniquidade geracional dos impostos face ao ciclo vital dos brasileiros também está demonstrada. Suspeita-se que a incapacidade em promover a reforma do Estado-providência ameace as suas liberdades futuras, mas decerto que em termos ditados pelas pertenças presentes, em que a dimensão regional há-de ser decisiva, ao contrário de Portugal.
REFERENCIAS
Estudos em Homenagem a Manuel Jacinto Nunes, Lisboa: ISEG, 1996.
Homenagem ao Professor João Lumbrales, Lisboa: Faculdade de Direito, no prelo
Macedo, Jorge Braga de, Álvaro Ferreira da Silva e Rita Martins de Sousa, War taxes and gold: the inheritance of the real, Nova Economics Working Paper n °318, Março 1998
Portugal: Um estado de direito com oitocentos anos, Lisboa: Academia das Ciencias de Lisboa, 1981.
Sachs, Jeff e Andy Warner Economic Convergence and Economic Policies, Brookings Papers on Economic Activity, Primavera 1995.
Tornell, Aaron e Philip Lane, The voracity effect, American Economic Review, Março 1999